"parabéns pra você"
um comentário sobre um rito tão entranhado que dispensa apresentações (e ainda assim eu apresento)
tateio, agora, por entre ovos. talvez eu quebre algum. tenho tentado estudar culturas de tradição oral. em etnomusicologia, fui introduzida ao conceito da performance na antropologia – performance como comportamento restaurado, como repetição e rito. meu trabalho final foi sobre o livro de Seeger, focando na arte vocal dos Kisêdjê. hoje tive uma aula de Performances do Tempo Espiralar, livro de Leda Maria Martins (ela esteve na FLIP numa linda mesa e foi a primeira vez que peguei autógrafo na FLIP). Leda também usa o conceito da performance para conceituar a, como ela mesma diz, gnose africana e afro-diaspórica nas Américas. eu sei que a palavra performance anda pegando mal – tuiteiros que o digam – mas não se deve jogar o bebê também com a água do banho. se usada bem, o conceito da performance não é tão estúpido quanto fazem crer.
às vezes, em minha imaginação, recorro aos ritos conhecidos para tentar compreender o que é performance – rito, comportamento restaurado e repetição. aqui, os ovos. uma dúvida me rodeia: se a gente não chamar de performance também os ritos ocidentalizados não corro o risco de exotizar a cultura do outro? tanto reconhecer, no meu entorno, as inscrições temporais dos ritos mais banais. mesmo que importados ou impostos ou estúpidos, apenas como um exercício. como cantar parabéns pra você. pensei hoje nesse ritual quiçá porque editei o som de uma cena com parabéns para você ontem mesmo. a música ressoava na minha cabeça.
a cena é conhecida, tem mais ou menos um início e um fim bem claros, começa-se cantando, termina-se gritando. mas pode se estender em duração, como pode incorporar outros cantos depois do parabéns – é pique, derrama senhor, ele é um bom companheiro, com quem será, discurso-discurso, e outras diversas variações regionais ou religiosas. porém, há um centro, um modelo, uma fórmula que se repete. as palmas. o ritmo. os gritos de exaltação assim que se fala o nome do aniversariante. geralmente, batemos palmas, depois podemos jogar os braços ao alto como quem comemora gol. então, aumentamos os ritmos das palmas: aplaudimos o aniversariante ou nosso próprio mini-espetáculo, entoado apenas pelas nossas vozes e corpos. cantamos em coro. menos quando não queremos cantar em coro1. mas a força do parabéns reside no coro. reside na coletividade. há ali duas ou vinte ou centenas de pessoas, juntas, batendo palmas e cantando uma canção tão corporificada nas nossas vidas que sequer paramos para pensar direito nisso. sequer a consideramos uma canção.
a canção é tão modelada e coletivizada que foi possível sincronizar um arquivo de áudio de parabéns (de outro lugar) com a cena de parabéns do filme que eu estava editando. o molde é o ritmo. e guarda suas pequenas diferenças, claro: o arquivo tinha um batuque junto com as palmas e as vozes, as pessoas estavam mais exaltadas. o som impregna-se com a realidade e o momento específico da onde e quando foi gravado. todo parabéns é unico, porém sempre é reconhecido como tal. uma performance não é apenas uma repetição exata, mas também a incorporação de mudanças e inovações que surgem no calor da hora. porque a performance é o calor da hora: tem de existir presença, corpo. tem de ter gente lá, cantando. e gente é feita de improviso, de ânimo, de humor, de inscrições sociais, raciais, étnicas e culturais. ainda assim, o parabéns de um arquivo pode ser incorporado a outros parabéns, gravado em outro lugar, com outras pessoas. há, aí, uma resistência. besta, claro, porém tão cotidiana que passa imperceptível.
geralmente o aniversariante se posiciona em frente a um bolo com velas. e as assopra – costume que pega mal depois do covid. pode-se fazer um pedido no momento em que se assopra a vela ou quando se corta o primeiro pedaço de bolo. de baixo para cima, dizemos, para crescer na vida. e, então, o aniversariante deve escolher quem deve dar o primeiro pedaço. coisa que, desde criança, sempre achei constrangedor. aliás, eu nunca lidei bem com o momento do parabéns. ainda assim, ano após ano, eu repito o rito. se antes eu fugia, busco concretizá-lo: foi o que fiz no meu aniversário, semanas atrás, tanto com meus amigos, como com a minha família. insisti para que minha avó, que queria ir para casa, ficasse para o parabéns. acho que essa coisa de ficar velha e sentimental é meio verdade. é, enfim, um ritual de passagem. como se… se eu não providenciar um bolo, tiver diante de mim uma fonte de luz, e não ouvir o parabéns, ainda que constrangedor, cafona e tradicional, quer dizer que não fiz aniversário. que não ganhei mais um ano. que este ciclo não recomeçou. como se eu vivesse no the sims: no jogo, o sim só muda de idade se apagar a velinha.
é claro que o parabéns tem a sua história. esses dias mesmo, no twitter, vi prints de uma tese FAPESP em que o é pique é pique é pique, é hora hora hora, rá tim bum é um grito inventado pelos estudantes de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, da década de 30 (e que, surpresa minha, não se canta em todos os lugares assim; no Rio, cantam é big). já a letra parabéns pra você nesta data querida muitas felicidades muitos anos de vida é composta por Bertha Celeste para um concurso de rádio em 1942. e, por fim, happy birthday to you, a música-mãe e que dita o ritmo de todas as traduções e adaptações, foi composto e escrito pelas irmãs Hill. Mildread J. Hill era etnomusicológa e compôs uma canção para crianças baseado no ritmo dos spirituals, canções que os negros escravizados dos EUA cantavam enquanto trabalhavam. eram cantadas a capela e as frases musicais se repetiam, como numa meditação ou num louvor, diminuindo e aumentando o ritmo. o blues, o folk e a black music são derivações dos spirituals.
como esse parágrafo final virou uma seção de você sabia? plagiada da wikipedia, inclusive parecendo que eu planejei começar o texto falando de etnomusicologia e estéticas afro-dispóricas e terminá-lo retomando-as (não, eu não tinha a mais puta ideia disso quando pensei em escrever sobre o parabéns quando estava no ônibus), vou dar uma arejada reverenciando um clássico de parabéns do cinema nacional: o curta ecano Nosso Parabéns ao Freitas. em 05:40, uma cena clássica, exagerada de parabéns: tem o tio que canta é pica, é pica, é pica, as palmas, a jogadinha de braços para o alto – uma encenação sociológica e cultural de baixo nível, como ele merece, desse momento tão especial. essa cena, afinal, precede a entrada triunfal de Alexandre Frota, atuando como ele mesmo. é ver para crer (só se quiser mesmo, este é um tesouro que pode ser mal compreendido, um mero filme universitário de 2004…).
obrigada por ler minhas bobagens! essa aqui, com certeza, tá no top3 do ranking. um beijo, e até.
um adendo que a wikipedia pelo visto não pegou: em São Luís, Maranhão, e em Portugal, há uma segunda estrofe. depois de "parabéns a você/nessa data querida/muitas felicidades/muitos anos de vida", em vez de repeti-la, os maranhenses cantam "hoje é dia de festa/pra alegrar nossas almas/(nome do aniversariante) faz anos/uma salva de palmas". pros portugueses, o terceiro e último versos podem ser fundidos: "à/ao menina/o (nome) uma salva de palmas"
fontes nada fidedignas: 1) nasci no Maranhão e meus pais mesmo não sendo maranhenses me ensinaram a cantiga como a cantavam lá 2) tive um amigo neto de portugueses que cantava do segundo jeito, abreviando os versos 3 e 4 da segunda estrofe.
amei a bobagi