Sylvia, Virginia e Clarice sob a luz do machismo
questões sobre o interesse carniceiro pelas trágicas vidas de mulheres escritoras
em 20/03 a usuária do twitter que se nomeia como clarice lispector bot (@pinkhasovnabot) retuitou uma outro @ que dizia (estupidamente, como se diz coisas no twitter): “oq faltou pra clarice lispector era alguém pegando ela pelo ombro, dando um chacoalhão e gritando ‘reage gata para de ser chata vamo tomar um sol”. a pessoa por trás do bot de clarice lispector bot (um bot que tuíta trechos de livros escritos por Clarice Lispector), ficou brava pela estereotipização de sua ídola em uma mulher triste, chata e carente de vitamina D. na thread de desabafo da leitora apaixonada, ela diz “(…) permitir complexidade a uma mulher inteligente é se permitir escutá-la, e queremos ver mulheres, não ouvi-las. plath é só seu suicídio, woolf só seus traumas, clarice só sua suposta tristeza.”
apesar de clarice lispector bot ter, como se diz muito no twitter, batido palma para maluco dançar, a sua indignação me toca. embora seja possível identificar mitos e auras fantasiosas em torno de escritores homens, a coisa ganha uma dimensão quase sempre trágica e personalista nas mulheres. biógrafos se esforçam para identificar o suposto abuso sexual sofrido por Virginia Woolf por um dos seus meio-irmãos em trechos lacônicos de seus diários, há uma corrente que aposta que a mãe de Clarice Lispector contraiu sífilis pela violência sexual sofrida na Ucrânia para justificar narrativas de seus livros e, claro, o exemplo mais cristalino de todos: a busca incessante pelos motivos do suicídio de Sylvia Plath, que a crítica feminista localizou como o machismo e a traição de seu marido (e poeta laureado) Ted Hughes. parece-me que há uma investigação incessante da vida aparentemente trágica dessas mulheres, se não suicidas como Woolf e Plath, deprimidas e loucas, como demonstram as aparições lânguidas de Clarice em vídeo e sua mão queimada pelo fogo. me parece muito pouco cuidadoso expor mulheres a esse escrutínio, inserindo-as sempre sob o signo da opressão de gênero. se Sylvia Plath se suicidou horrivelmente, é porque foi desprezada pelo seu companheiro misógino e invejoso; a doença psíquica de Virginia só pode ter sido fruto de um abuso sexual infantil; a tristeza de Clarice só pode ter relação com a violência sofrida por sua mãe. e tudo isso é tirado de trechos escritos que nunca são provas cabais e não resistiriam a um tribunal sério.
eu também sou fofoqueira e me alarmava com essas suposições que biógrafos e críticos disseminam como uma verdade. mesmo para uma mulher, uma outra mulher parece sempre mais difusa, lunar e incompreensível, claro, porque não estamos livres desse fascínio que a tragédia feminina evoca – moramos no mesmo mundo que os homens e, como feministas, somos as primeiras a investigar os rastros da opressão nas mulheres. quem me ensinou isso foi Janet Malcolm em A mulher calada – Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. Janet investiga as biografias de Sylvia Plath, seus diários publicados, e artigos apaixonados nos jornais. seu ponto de partida é Bitter fame, a única biografia que incluiu o outro lado da moeda, as visões e os materiais fornecidos pela cunhada de Sylvia, Olwyn Hughes, administradora do espólio literário de Plath, e que odiava todas as biografias e artigos que condenavam Ted e pintavam Sylvia como uma mártir feminista. Olwyn, inclusive, odiava as feministas. Bitter fame foi uma biografia detonada pela crítica literária e por supostos amigos de Sylvia – e também, pela própria Olwyn. Janet, ao conversar com a autora de Bitter fame, que também é poeta, Anne Stevenson, descobre que Anne foi obrigada contratualmente por Olwyn a realizar a biografia daquele modo, vendo-se numa espécie de prisão; após a tortura da escrita, com o lançamento de Bitter Fame, teve de ler que tinha inveja de Sylvia Plath pois suas poesias nunca alcançaram a fama de Sylvia Plath. mas, perigosas afirmações minhas agora, Sylvia só não é conhecida mundialmente justamente por conta de seu suicídio sem carta de despedida? o que Sylvia deixou são seus últimos poemas, reunidos no livro Ariel, que foram analisados à luz da eminência do suicídio, escritos febrilmente em madrugadas frias e solitárias. não são memórias, não são testemunhos, são poemas. poemas sobre sua mãe, que Sylvia tinha uma relação complicada, sobre seu pai, sobre os homens e sobre a sua própria e irascível ira. mas são poemas, e podem ser interpretados de diversas maneiras (inclusive com uma sugestão da atração reprimida de Sylvia por mulheres). o que Janet nos conta é que Sylvia Plath era uma mulher que tinha muitos inimigos, e principalmente inimigas, mulheres que a odiavam e que pensavam que ela fazia da vida de Ted Hughes (um homem muito alto e muito bonito) um inferno. eu, que só sabia da versão de Sylvia Plath como mártir feminista suicidada pelo marido, acabei influenciada pela Janet: Sylvia era uma gênia sim, e também uma mortal comum em busca de reconhecimento pela sua escrita, mas que parece ter esgotado suas últimas energias vulcânicas nos poemas de Ariel (o que a alçaria para o Panteão dos Poetas), provocada, sem dúvida, pela traição de Ted, mas não só (afinal, nunca se faz algo assim em decorrência de uma única frustração); que era mimada, um pouco insuportável e geniosa. Virginia, como se sabe, também era um pouco insuportável. os fãs de James Joyce não deixam esquecer.
o que Janet parece se esforçar para apontar, em seu livro, é a impossibilidade de se biografar alguém; no limite, a impossibilidade de se conhecer verdadeiramente alguém. os escritores, que se metem a escrever diários, são os favoritos dos bisbilhoteiros: há disponível aí um material bruto de como suas mentes funcionavam. mas diversas análises mostram como Virginia e Sylvia escreviam seus diários com uma linguagem poética, próxima de sua escrita ficcional, inclusive editando e adulterando os diários. ou elas se preparavam para garantir que a sua fama não as expusesse mais além do que elas mesmo definiriam, e aí identifica-se um traço de ambição e sede de reconhecimento, ou seus diários eram treinamentos para as publicações (aposto nos dois; afinal, de novo, não é apenas um motivo que nos leva a agir de determina maneira, mas muitos deles, simultâneos e, às vezes, contraditórios). o traço da ambição é o que me interessa aqui: a imaginação dessas autoras de que um dia seriam tão veneradas que publicariam seus diários.
mas antes, um à parte. não sou muito conhecedora de Clarice Lispector, e, por isso, minha impressão dela também é superficial: parece-me que se esforçava em não ser ambiciosa em relação à escrita. ontem assisti à entrevista de Rachel de Queiroz no Roda Vida de 1991 e ela diz algo que me lembrou as falas de Clarice: Rachel não sente prazer escrevendo, mas é a única coisa que sabe fazer. há algo subterrâneo nas falas dessas duas mulheres escritoras brasileiras mas tão diferentes, uma necessidade de afirmar a dor infrigida pelas Musas, como se elas as açoitassem e as obrigassem a datilografar horas (e depois, revisar, acompanhar a edição e participar de entrevistas); uma resposta que tem uma conotação depressiva e humilde, como se fossem escravizadas pela escrita e pela fama. é claro que escrever é uma obsessão. em homens e mulheres, gostam de ver essa obsessão como sinais para uma psiquê um pouco transtornada, seja esquizo, neurótica ou narcísica. mas me interessa mais ver a obsessão (ou a possessão, que é um termo adequadíssimo pelo ato de ser possuído por espíritos ou Musas e botar a mão para trabalhar), por exemplo, de Carolina Maria de Jesus que, sem nada ao seu redor que inspirasse escrita (estantes de livros, pais intelectuais, máquinas de escrever, três refeições completas ao dia), escreveu febrilmente, a mão, em papéis recolhidos nas ruas, sobre sua vida, a dos seus, e inventariou ficções. parece-me uma coisa brasileira, brasileiramente feminina (não tenho nenhuma base para afirmar isso), essa posição de humildade em relação a própria escrita e a repulsa que a Clarice Lispector e Rachel de Queiroz diziam sentir pelos próprios livros. como se fosse errado elas terem desejo de escrever (voltando à Carolina de Jesus, não foi essa a motivação do jornalist que entrou em sua casa e viu seus escritos pregados na parede, a sensação de que algo estava errado… como essa mulher preta pobre e que parece analfabeta escreve, e escreve muito? que fenômeno improvável é esse?). essa característica não era do feitio de Hilda Hilst, por exemplo, que não era nada humilde em relação ao desejo de escrever e ser lida. como Sylvia e Virginia, Hilda ansiava e declarava a vontade de ser lida e, talvez até mesmo, a fama, o sucesso, o dinheiro (dinheiro que Rachel de Queiroz ganhou com suas obras, mesmo as odiando). diga lá Rachel e Clarice o que quiserem, escreve-se pensando em ser lida.
será que as nossas visões feministas dessas escritoras icônicas cairiam por terra se começássemos a pensá-las como mulheres ambiciosas? ao invés de tentarmos deduzir o que as levou ao suicídio, tentaríamos descobrir o que as levou ao reconhecimento literário. cairia por terra esse nosso olhar – tanto ingênuo, como obsceno – se, como Janet e Anne escreveram, admitíssemos que não eram pessoas pueris, a revelia do próprio destino, sob o signo da opressão feminina? o que precisou mover e fazer uma mulher, nesse mundo patriarcal, para ser publicada e ovacionada? talvez passaríamos a dizer que escrevem de um jeito único, que também inventaram o romance moderno ou que captaram bem o espírito do seu tempo. talvez parássemos de sublinhar trechos tristes que seriam indícios somente da violência e da opressão, para nos depararmos com suas visões políticas, seu humor, sua ironia e sua linguagem. talvez, bem talvez, a escritora mulher possa se libertar desse jugo da escrita íntima, sentimental, confessional, como se sua escritura sempre fosse apenas uma pista para saber mais de sua vida pessoal, enevoada em mistérios noturnos.
Janet Malcolm tem uma tese em A mulher calada. para ela, as biografias e o mito em torno de Sylvia Plath são uma “espécie de movimento de libertação dos mortos”, ou seja, revivem Sylvia Plath; mesmo que ela não possa mais se defender, nem contrariar a imagem que criam dela. sua imagem serve, agora, aos interesses alheios, sejam políticos, como a crítica feminista (os partidários de Sylvia Plath “querem restaurar os direitos que Sylvia Plath perdeu ao morrer”, diz Janet), ou mais mesquinhos, para ganhar algum dinheiro e se sustentar enquanto escritor. esse é o caso de Anne Stevenson e de tantos escritores que aceitam encomendas de biografias e artigos e obituários, como o próprio Ted Hughes, que precisa do dinheiro do mito de Plath para criar seus filhos e manter seu padrão elevado de vida. ou para ganhar fama, como é o caso dos amigos, inimigos e familiarias de Plath que se apressaram em publicar nos jornais suas memórias sobre ela. até mesmo um obscuro pintor, vizinho de Plath, ganhou seus cinco minutos de fama – foi o último a ver Plath viva, disseminando a aparente mentira de que Ted Hughes e sua recente esposa fizeram uma festa barulhenta logo após o enterro da escritora, a mãe de seus filhos e sua primeira esposa. “desse modo, devolvendo a Sylvia Plath a condição de pessoa viva, operam mais uma substituição: condenam os irmãos Hughes e à Sra. Plath às esferas inferiores, para tomarem o lugar de Sylvia Plath entre os mortos desprovidos de direitos.” é Ted Hughes quem morre em vida, de quem tudo se pode falar, sem remorsos – Ted vive assombrado, para sempre, pela sua esposa suicida e ninguém o deixará esquecer disso.
para terminar esse longo texto, cito a newsletter de Ariela K., relembre e apague seu nome, que me ajudou a formular tudo isso, junto com a indignação de clarice lispector bot. num lindo texto que começa sobre a fratura arquitetônica de um prédio, Ariela comenta uma parte ignorada do aclamado Um teto todo seu, em que Virginia Woolf declara que os antigas desculpas de “falta de oportunidade, formação, incentivo, lazer e dinheiro” já não servem mais para justificar a lacuna das mulheres no panteão dos escritores. lembrei-me de quando li Um teto todo seu, há muitos anos, para um seminário de uma disciplina chamada Gênero, arte e sociedade da USP; e que esse final, que me atingiu como um retrogosto amargo, não coube na explanação do seminário dessa disciplina que procurava enaltecer a arte feita por mulheres, denunciando o contexto patriarcal que as ostracizou, invisibilizou ou as matou. Ariela K. tenta nomar uma difícil sensação, um incômodo impronunciável: a de que as minorias são, muitas vezes, definidas pela própria opressão. digo eu que a obra de uma mulher escritora é celebrada, muitas vezes, apenas como material abundante para rastrear as violências, explorações, difamações e invisivililidade do gênero. e também a sua luta, a sua resistência – mas só porque são mulheres. pelo menos eu nunca vi, por aí, devoções em torno da luta “contra o sistema” nos textos de um escritor homem e branco. mesmo se são até que claras, como Graciliano ou Faulkner ou Joyce, mesmo que se jogue alguma luz sobre a questão, nunca é sob esse mesmo holofote a qual as mulheres são investigadas.
continuo com a intenção, então, de falar – diletantemente, sempre, pois não sou especialista em nada – sobre a ironia na literatura das mulheres, mas escolherei outras três para tal; Lispector, Woolf e Plath estão já demasiadamente inundadas por seus sofrimentos. é o que pretendo fazer na próxima newsletter a partir de Natalia Ginzburg, Elvira Vigna e Liudmila Ulitskaia. até mais e muito obrigada!
Oi, Mariana! Compartilharam seu texto num grupo que estou e fiquei muito feliz e honrada de achar o meu nome nele! Talvez abusando de ser auto-referente, vou deixar aqui o link pra uma das minhas primeiras edições da newsletter, que tenta explorar justamente a Sylvia Plath não depressiva, não suicida: https://arielak.substack.com/p/a-sylvia-plath-que-nao-enfiou-a-cabeca
(Confesso que tentei reler o texto mas é muito constrangedor ler coisas antigas da gente; então só espero que o texto ainda esteja legível!)
Bjos
Adorei a reflexão! Curiosa para ler mais das suas investigações.