diário de leituras/2025: Ivan em dose dupla
bobagens sobre A Morte de Ivan Ilitch (Tolstói) e Tio Vânia (Tcheckov)
se te parece que eu leio pouco, é verdade… A Morte de Ivan Ilitch tem apenas 76 páginas e eu demorei um tanto para concluir! tenho uma desculpa (o mestrado), e uma suspeita.
eu tinha achado que depois de Memórias Póstumas, seria conveniente pegar A Morte de Ivan Ilitch — mas suspeito que a narração de Tolstói logo após a toada de Machado bateu meio mal. talvez o melhor seria ler algum Dostoiévski… mas o Dosto-não-lido da minha estante é grande, e eu preciso (!) de leituras menores. no meio d’A Morte (sim, no meio de uma pequena novela que se lê em um dia) eu li Tio Vânia — para o mestrado, e aqui, vai… a dose dupla de Ivans!
A Morte de Ivan Ilitch, Lev Tolstói, editora 34, tradução de Boris Schnaiderman, 2006/ Tio Vânia, Anton Tcheckov, edusp, tradução de Eduardo Tolentino de Araujo, 2024.
Tolstói. Ivan Ilitch é juiz. o livro começa no seu enterro, apresentando a família e os amigos (mais para falsos amigos), e retorna no tempo para contar quem é Ivan Ilitch e, principalmente, seus últimos dias de vida. Ivan Ilitch passou dias de intensa dor, antes de morrer. nesse período, ele desenvolve uma relação com o ajudante de copeiro, o mujique Guerássin. o momento em que Ivan entende o que se passa por ele (o processo de morrer) até a sua morte é angustiante, desconfortável, e impossível de largar.
Tcheckov. Vânia trabalha no campo com sua sobrinha Sônia, morando com sua mãe Maria. a peça se inicia com a presença do professor aposentado Aleksándr, cuja esposa, irmã de Vânia e mãe de Sônia, faleceu, e sua jovem esposa Elena na casa de Vânia. também lá estão Mikhail, o médico, o Bixiga e Marina, a velha babá. uma série de desdobramentos vão dar no surto de Vânia, pegando uma arma e tentando matar (ao professor? a si mesmo?), o que leva o casal a partir da propriedade.
vou falar aqui umas bobagens dos russos que não é novidade caso você seja familiarizado com literatura e língua russa. Vânia é apelido para Ivan, e o Tio Vânia, o personagem, chama-se Ivan Petróvitch Voinítski. já o Ivan Ilitch, que às vezes é chamado de Vânia, é Ivan Ilitch Golovin. sempre me divertiu que os apelidos russos não só às vezes são diferentes do nome (como Sônia para Sófia) como têm mais letras. bem, outra coisa unem os dois Ivans… o fato de que, hora ou outra, são chamados de Jean, o nome afrancesado para Ivan…! a edição de Tio Vânia cita, numa nota de ropapé, a “influência da cultura francesa na elite russa.”
o que une os dois Ivans? afinal, Ivan é um nome comum — eu estaria aqui fazendo conjecturas sobre dois Joãos? (talvez sim!). mas também são unidos por seus criadores: pela amizade de Tolstói e Tcheckov — o segundo, claro, reverenciava o primeiro (e também, parece-me, omitia suas opinões de desagrado). parece que os dois encontraram-se, na propriedade de Tolstói, em 1895 — uma curiosa história em que Tolstói convidou Tcheckov para ir ao riacho, entrou n’água e conversou submerso com Tcheckov na margem (que eu não sei se é real). Ivan Ilitch foi publicado, então, em 1896. Tio Vânia foi publicado em 1897. Tolstói, um aristocrata mais conhecido por suas obras monumentais, Tcheckov, um médico mais conhecido por suas formas breves.

ah, Mariana, você pode me dizer, você meio viaja sobre esses encontros…! só porque você leu um livro no meio do outro — ou um livro dentro doutro — não quer dizer nada — não mesmo. mas foi assim que me aconteceu: dois Ivans (e dois Vânias dois Jeans), dois imortais da literatura russa, um publicado pertinho um do outro, o final do século XIX. em 2025, eu comecei o ano em meados de 1800 e, em abril, cheguei a 1897. nada como os poucos anos antes da virada do século, todo mundo sabe o que nos antecede nesses momentos. nos anos 2000, o calendário Maia terminava e o fim do mundo começava (e ele começou!).
o que há, então, de parecido entre os dois Ivans? primeiro, são Jeans: fazem parte da cultura elitizada russa. mas também não são ninguém — e há aí mora o tormento. para achar uma intersecção entre os dois é esta: uma sensação de desperdício de vida, amargura, de nenhuma possibilidade, uma coisa-túnel, ar outonal frio, o caixão e a doença de Ivan Ilitch, a arma de Vânia. outono — a preparação para o inverno; o tempo de hibernar, de armazenar alimentos, de preprar-se para escassez. ali, pertinho, a virada sombria de século.
segundo, são rodeados de, um, gente da elite detestável (o professor, a esposa de Ivan). e, dois, gente pobre (para citar o Dosto) — da onde parece se extrair alguma verdade em meio ao desespero dos protagonistas. a descrição de Guerássin na voz de Ivan Ilitch, me perdoe qualquer besteira, é quase homoerótica. em Tio Vânia, as falas da babá Marina são particularmente irônicas (e algo engraçadas, a imitar sons de animais). em certo momento, o professor de Tio Vânia, que se sente doente, é paparicado pela babá Marina — Ivan Ilitch, antes de aceitar a morte, deseja internamente que alguém tenha piedade dele, trate-o como uma criança. sabe-se de 1917 e por isso é possível afirmar: um sopro revolucionário já inflava as artes verbais, a corrosão das elites, a iluminação dos mujiques.
e o que diferencia os livros dos dois Ivans? para mim, as mulheres. enquanto em Ivan Ilitch, a esposa e a filha são personagens superficiais, fúteis, incapazes de compreender o sofrimento de Ivan Ilitch, em Tio Vânia, as personagens femininas são (com exceção da mãe) cheia de matizes. Sônia, principalmente: Tcheckov coloca na sua boca um sofrimento feminino específico. ela ama e não é amada de volta — o seu amado deseja Elena, a jovem madrasta de Sônia, que é bonita — e Sônia lamenta: é porque sou feia. na sua boca, ela diz: eu sou feia! (quando é que você leu isso, assim, no seco?). não por acaso, o livro chama-se Tio Vânia — e a única sobrinha é Sônia — e finaliza com o monólogo dela. Sônia é a única capaz de inventar, em meio ao frio outonal, uma esperança para continuarem a viver — apesar de tudo.
por fim, e não menos importante, quero lembrá-los que A Morte de Ivan Ilitch foi apontado como um dos motivos que fez Lucas Limas, ex-marido de Sandy, pedir o divórcio1. jamais deixei de lê-lo sem tentar imaginar os pensamentos do músico… será que ele tinha a mesma consideração nefasta sobre o casamento sem amor de Ivan Ilitch em relação ao seu próprio casamento? bem…! bad vibes.
não importa os motivos de Lucas, mas vamos nos sentar e fazer uma constatação um pouco mais interessante: um livro de 1896 foi capaz de mudar o rumo da vida de alguém em 2024. como eu disse, eu mesma comecei o ano literário em 1850. sofri com Bovary, ri e sofri com Brás Cubas, sofri com Ivan Ilitch, Vânia e Sônia — e tudo isso foi escrito antes de 1900.
não perder o assombro — jamais perder o assombro com a literatura. é claro que o que eu leio são um, traduções, e mais do que traduções (como no caso de Brás Cubas), adaptações: não leio a mesma língua portuguesa que Machado escreveu, mas leio, ainda assim, Machado, e as traduções de Flaubert, Tolstoi e Tcheckov. sei que nessa newsletter ando ultimamente mais a favor do cinema do que da literatura, mas aqui, vou fazer uma pelas letras: a imortalidade é matéria de palavra. — não que ser imortal seja lá essas coisas! (afinal, você leu A Morte de Ivan Ilitch? aceitar a morte é melhor do que viver desilusões). o cinema — que nasce em 1895! — sempre terá uma questão tecnológica: a mídia data a sua época, sua imagem e seu som (quando há) é rasurado, texturizado, geologizado. já a palavra dessonorizada, escrita, pode ser limpa das marcas da sua época… e da sua língua… chega até a nós parecendo intacta desde os tempos imemoriais e pronto: divórcio da Sandy.

acabei de ler Ivan Ilitch também, adoro quando essas coincidências acontecem! eu tinha lido antes Memórias do subsolo e quis emendar com um russo. e pra mim as duas leituras combinaram muito pelos pensamentos sobre o sentido da vida. quem sabe não continuo nos russos e emendo um Tcheckov... se bem que durante a leitura de Ivan Ilitch eu fiquei com vontade foi de reler Memórias póstumas (juro!)
obs.: descobrir essa informação sobre a leitura de Ivan Ilitch e o divórcio da Sandy foi TUDO
Ainda não li Tolstoi, mas tenho a impressão que sempre vou gostar mais de tchekohv 😅