cartolinas brancas, canetas coloridas
memórias que escapam das páginas escritas por Elena Ferrante
olá. há muito tempo, acho, não apareço por aqui. dois meses, se não me engano. fui viajar, voltei, tive que me concentrar em escrever trabalhos, depois não tive vontade de escrever mais nada, e ainda hoje, faço isso um pouco obrigada.
hora ou outra, quase sempre, me vem um ímpeto de abandonar coisas. justamente quando eu achava que as coisas se encaminham bem, quando estou bem-humorada o bastante para me deixar absorver pelo mundo e despejar algumas palavras nesse (ou em qualquer) espaço, alguma coisa acontece, uma coisa sem forma, desanimadora e entediada, melancólica e cinzenta. e parece que não vem nem as repentinas vontades de escrever de antes, seja porque quero guardar as coisas pra mim, seja porque não sei ainda como articulá-las, ou porque me sinto obrigada a escrever porque eu mesma inventei isso. perco a energia.
talvez porque quando me convenço de que sou capaz de escrever até que com alguma regularidade, e que se me dessem um tema e eu tivesse tempo de pesquisá-lo ou senti-lo, eu conseguiria escrever sem muita dificuldade, surgem muitas dúvidas. o que estou fazendo, e por quê, e pra quê. sou capaz mesmo?
talvez um pouco cansada das minhas listas de leitura – desanimada com as leituras que se tornaram quase todas obrigatórias – peguei a tetralogia napolitana da Elena Ferrante para ler. chega. eu queria apenas ler, me divertir – e o que eu ganhei foi uma obsessão. muitas memórias vêm me engolfando de quando em quando. eu páro de ler, escrevo um nome saído das profundezas dos tempos nas notas do celular, tento lembrar o que nos aconteceu há 5, 10, 15, 20 anos atrás. tento lembrar como eu vim parar aqui. mas logo volto a ler, porque, mais importante que a minha vida, é a vida de Lila e Lenù e consumi-las o mais rápido possível.
esses dias, então, se penso em escrever, penso em escrever coisas íntimas demais. e aí fico preocupada com a exposição. porque Elena fez ficção. eu tomo o teclado agora sem nenhum personagem para me esconder. esta sou eu, não tenho tempo de inventar um nome nem uma história. o que Elena faz, magistralmente, é dar um contorno íntimo, preciso, sensorial sobre certas experiências femininas. e esta memória, que andava soterrada, submergiu.
eu tinha, talvez, 8 anos. cabelos compridos, meio ondulados. era uma das melhores alunas da sala de aula, não sei porquê, talvez porque me obrigaram a fazer o pré duas vezes, talvez porque gostasse de ler, talvez porque gostasse da atenção. estudava numa escola particular pequena, de bairro. estudei lá do pré à oitava série. o fato é que eu era elogiada porque escrevia bem. e uma escola pequena de bairro, como a escola de Lila e Lenù, não tem nenhuma vergonha – nenhuma linha pedagógica – de criar competições entre os alunos, de eleger descaradamente os melhores, de criar constrangimentos.
na minha escola não tinha sabatinas ou coisa do tipo. mas tinha eventos abertos aos pais, coisas chamadas Escolas Abertas, em que os professores escolhiam a dedo quem iria mostrar a suposta excelência (de uma pequena escola comandada por uma diretora louca, uma diretora que, voltando da Itália, uma vez, entrou na sala e começou escrever na lousa TIPOS DE MASSAS: NHOQUE, ESPAGUETE, RAVIOLI) aos pais. assim, eles costumavam me escolher.
eu era a única menina do grupo seleto, porém. tínhamos que ficar além do horário das aulas, preparando sei-lá-o-quê. ficava C., que desenhava muito bem, e desenhava os cartazes. O. que era o mais inteligente, sei lá, tirava dez em tudo dando risada e sem esforço. R. que não me lembro bem porquê, talvez por ser aplicado, filho da professora. talvez mais algum, não lembro. consigo encaixá-los como moldes nos personagens da tetralogia sem esforço.
eles tinham inventado que gostavam de mim – vê-se que sou Lenù –, sei lá, algum deles deve ter decidido que gostava de mim, e os outros, para não ficar atrás, juntaram ao coro e eles ficavam me seguindo no intervalo. o resultado, claro, era terrível: não tinha quase nenhuma amiga. então, estava eu e eles, numa sala de aula, após as aulas, só nós, preparando coisas para a Escola Aberta (um desenhava, outro não sei, eu era responsável por escrever – fico matutando… a gente tinha só 8 anos, isso não fazia sentido nenhum). era a última sala daquele pequeno corredor, a maior delas.
minha escola era pequena e circular, pavimentada com um chão cor de terracota. quatro salas de aulas davam para um pequeno pátio e um corredor comprido que não tinha nada, talvez o laboratório escasso e meio abandonado – onde, nas festas juninas, colocavam ali uma tapadeira, e que, uma vez, derrubamos ou caiu a tapadeira, revelando um casal num beijo atracado quando tínhamos 12 ou 13 anos, constrangendo-nos a todos. seguindo adiante do pátio das salas, alcançava-se um corredor, a sala da coordenadora que também era enfermaria – uma amiga minha sempre ia lá reclamar de dor de barriga para ser dispensada –, um bebedouro, a cantina onde eu comprava alfajores turma da mônica. andando pelo corredor apertado que virava numa quina brusca chegava-se na pequena quadra – local de disputa entre meninos, que queriam jogar futebol todos os dias, e meninas que queriam jogar futebol, queimada, vôlei e dançar –, atrás da quadra ficava um quiosque com mesinhas e o parquinho infantil (areia, trepa-trepa verde). antes da quadra, tinha uma escada larga, terracota, que dava ao lugar que ficavam os pequenininhos, o jardim de infância. eu me lembro de tudo ser escuro, a não ser a quadra e o quiosque, talvez pelo tom avermelhado do chão, talvez pela luminosidade escassa.
esse dia, eu lembro, estava escuro. em determinado momento, enquanto eu me concentrava em escrever não-sei-o-quê num cartaz sobre sabe-lá-o-que-seja, eles apagaram a luz e fecharam a porta. os alumínios das janelas, acho, eram pintados de amarelo, o vidro de ranhuras deixava passar pouca luz – estava nublado. demorei a perceber o que estava acontecendo. mas senti a tensão no ar junto do escuro. quando me virei e me empertiguei (estava debruçada com o canetão no cartaz), os meninos estavam atrás de mim, não muito próximos, mas juntos, como num círculo ou linha – menos R., que desconfortável, desordenava a coisa toda –, preparando-se para uma coisa que recendia a um plano arquitetado entre eles. estávamos sozinhos – fazíamos aquelas coisas da Escola Aberta sem supervisão, talvez porque éramos bons alunos. então, rindo de nervoso, eles falaram que queriam me mostrar suas cuecas. ou que queriam abaixar as calças. não sei direito. o que aconteceu é que, um após o outro, abaixaram seus shorts ou calças e me mostraram… suas cuecas. suas cuecas de bichinho, talvez de bananas de pijamas. suas cuequinhas coloridas e infantis, e nada mais. R. não queria e os outros obrigaram ele, começou aquela lutinha característica de meninos, e abaixaram o shorts dele contra a sua vontade. acompanhei tudo calada e lívida. eu me lembro da tensão, de estar assustada, com certeza me faltava a cor. eu não sabia como reagir.
depois, começaram a insistir, melosamente, que como tinham mostrado suas cuecas, eu tinha que mostrar-lhes minha calcinha. então, penso, e quase sinto, meu coração disparando, mil pensamentos voando sem conseguir completar nenhum, sem saber o que fazer. insistiram com um pouco mais de adulação racional, você viu a cueca de todos, nada mais justo que a gente ver a sua calcinha – afinal, eles eram os melhores alunos da sala.
fico pensando que tipo de pessoa eu sou. fico pensando se eu tivesse gritado ou se eu tivesse mostrado minha calcinha. mas a única coisa que eu fiz foi ficar calada e sair da sala. abri a porta da sala, nervosa, tinha sede, meu coração dava piruetas, fui beber água no bebedouro. lembro-me de olhar o bebedouro metálico, pensar o que era tudo aquilo. o que era? o que significava? bebi água, esperei meu coração aquietar, as palmas pararem de suar e voltei para a sala. voltei para continuar o que estava fazendo, escrever na cartolina, terminar, ir para casa, nunca mais falar nisso, fingir que nada aconteceu.
quando eu voltei, as luzes estavam acesas novamente, mas, por sua vez, eram eles que estavam lívidos, com olhões arregalados. não entendi aquela reação até que perguntaram se eu tinha ido contar à professora. eu lembro de quase rir – contar à professora não passou pela minha cabeça nem por um segundo – e dizer que não. suspiraram, aliviados. continuamos a rabiscar cartolinas no meio do ar carregado e silencioso, entrecortado apenas pelo som da caneta no papel.
por alguns anos, essa história meio secreta ficou guardada comigo. depois, quando fiquei adolescente, achava-a boba, ingênua e talvez tivesse até um certo orgulho de ter acontecido comigo. achei, durante um tempo, que ela era tipo uma pedra fundamental da minha personalidade – sem nunca conseguir saber exatamente como. comecei a contá-la, para dar risada e fazer os outros rirem. depois, comecei a ler sobre abusos e assédios seríssimos que aconteciam com as meninas, e parei de dar importância à história. os anos vieram – outras coisas, com certeza mais sérias, apagaram-na. até hoje, agora, sinto um pouco de vergonha de desenterrá-la.
não passa de uma brincadeira, de uma curiosidade infantil, fruto da inexistente educação sexual das escolas. aconteceu comigo porque eu era a única menina junto com outros meninos, porque eles articularam um plano infantil, porque eles queriam mostrar suas cuecas ou ver minha calcinha. acho ainda graça que as roupas de baixo é que estavam em jogo e não propriamente as genitálias. sei de histórias mais …desnudas… que aconteceram com amigas. mas tudo – o plano deles, obrigar o mais tímido por meio de força física, o meu terror, a minha recusa em forma de fuga, o medo deles de eu contar para uma autoridade, o fato de que isso jamais passou pela minha cabeça – ainda me parece esquemático em termos de socialização masculina ou feminina.
ainda é uma memória viva – não exatamente as cuecas – mas o escuro da sala, as palavras insistentes, o chão terracota, o bebedouro, a minha experiência de ansiedade e certo terror pela incompreensão daquilo, a lividez e o assombro no rosto deles, o alívio por eu não ter contado e, depois, minha preocupação se o certo era ter contado, se eu era, mesmo tendo recusado, errada ou culpada (ou indigna, uma palavra que nunca entendi muito bem). e, também, o meu pudor, em contraste com o despudor deles. eis, aí, acho, uma experiência socialmente feminina – o que me constitui enquanto parte do conceito confuso, quase inexplicável, do que é nascer e ser atribuída ao sexo feminino. estudei com eles por mais um monte de anos e, no entanto, nada demais aconteceu com eles. não sei nem se eles se lembrariam, se tem importância isso a um menino ou a um homem.
às vezes, me pego ainda calada, com um pouco mais de ferramentas do que outrora, mas ainda experimentando um certo assombro, um certo mistério das coisas da vida, uma tensão interdita, remediando pactos silenciosos. volto a caneta à cartolina, mesmo que não saiba o que fazer com as palavras.
mto loco como a elena ferrante desperta demais esse tipo de memoria
Muito interessante ler sobre esse acontecimento, esse tipo de acontecimento que fica gravado na memória, por motivos que só nós mesmos podemos explicar.
Também acho q essa história mostra algo da socialização masculina ou feminina, pois acho inimaginável a mesma situação acontecendo com os gêneros trocados, um grupo de meninas querendo mostrar a calcinha para o único menino numa sala fechada, forçar uma das meninas a também abaixar a calcinha e depois exigir que o menino da sala mostre a cueca.