Ru, de Kim Thúy
"em francês, ru significa <pequeno riacho>, e em sentido figurado <fluxo> (...). em vietnamita, ru significa <canção de ninar>, <embalar>."
a citação do subtítulo é a epígrafe do livro de Kim Thúy, que deixou o Vietnã aos dez anos rumo a Quebec. este é o primeiro romance dela.
comprei esse livro à minha velha moda: em uma promoção. sou um pouco obcecada pelo projeto editorial da Âyiné, e resolvi aproveitar um bazar online de descontos. comprei dois, um outro por causa da minha pesquisa de mestrado, e Ru, porque nunca tinha lido nenhum autor ou autora vietnamita — e por conta da capa. e também do nome.
mas eu não sabia nada, nadica, de Kim Thúy. eu achei que era um livro de contos, talvez por conta dos textos pequenos. não é. Ru está entre aqueles livros que costumam descrever como de difícil classificação nas resenhas. é romance? é, é auto-biográfico? é, é livro de memória? sim, poderia ser poesia? poderia, é ensaio? não tanto, é não-ficção? não. é auto-ficção? acho que não. auto-ficcionalizar-se poderia se tornar uma arma contra ela.
vim ao mundo durante a ofensiva do Tet, é assim que ela inicia o primeiro parágrafo. vi a luz pela primeira vez em Saigon, inicia o segundo. minha vida tinha o dever de dar continuidade à vida de minha mãe, termina o primeiro texto. da primeira à ultima linha contam-se seis frases, a maioria longas, finamente trabalhadas em imagens poéticas e sintéticas, como quem pinta ao escrever. e um espaço em branco se abre na página amarelada antes da nota de rodapé que explicará o que é ofensiva do Tet.
e a nota de rodapé explica, sucinta, a ofensiva: ataque empreendido pelos norte-vietnamitas e vietcongues contra o exército americano e os sul-vietnamitas, em 30 de janeiro de 1968, durante a Guerra do Vietnã. é preciso dizer que até ler esse livro tudo que eu sabia sobre a Guerra do Vietnã — e talvez sobre o Vietnã em si, para além do exotismo, da comida e das florestas tropicais — estava contido em poucas aulas de história e a adoração ingênua e disante pelos vietcongues da contracultura sobretudo estadunidense. tudo que eu realmente sabia, então, eu tinha apreendido através das imagens exuberantes de Apocalipse Now, dos protestos que aparecem no filme Hair e etc.
não tinha a mínima ideia, para falar a verdade, do Vietnã pós-guerra, após o horror do agente laranja, após a derrota estadunidense, após a vitória do comunismo. como se, a partir dali, a história vietnamita não fosse mais importante ou atraente. ou, talvez, fosse silenciada ou desinteressante. o Vietnã cumpriu seu pequeno papel na história mundial em que os EUA figuram protagonistas, e então, submergiu em sombras de uma floresta tropical e largos rios. a literatura — antes de mais nada, este é o seu papel — de Kim deu-me outras histórias, outras imagens e sentidos, outra dimensão da guerra do Vietnã. a guerra com g minúsculo.
é como ela diz: quando era pequena, acreditava que a guerra e a paz fossem antônimos. e, no entanto, vivi em paz enquanto o Vietnã estava em chamas e tomei conhecimento da guerra somente depois que o Vietnã baixaria suas armas. seu pai era prefeito, sua avó era tão rica que havia na casa delas um armário só para sutiãs. ela é sul-vietnamita, e os norte-vietnamitas a mando do governo comunista ocuparam sua casa e confiscaram os pertences de sua família. quando o soldado vê o armário de guardar sutiãs, ele sequer hesita diante de tal exuberância de sensualidade, porque não os compreende. para ele, parecem-se com os coedores de café que a sua mãe, todos os dias, usava para coar o café que vendia a quem passava na rua e que ficava pendurado, o mesmo, sobre sua cabeça enquanto dormia.
a autora não chega a nos explicar a história tão ostensivamente: as doses de terror e deslumbramento da sua infância chegam nesses relatos curtos, anedotas, permeadas por cheiros, toques, vozes, através de familiares, vizinhos, conhecidos, amigos. ela e sua família migram ou, para melhor dizer, jogam-se ao mar e aos seus perigos a fim de conseguir sobreviver — são os chamados boat people. eles tinham de decidir pela possibilidade de morrer no mar, mas escapar e ter uma vida, ou morrer numa mina e acabar numa floresta no Camboja, como ela diz em algum momento.
sua família fica um tempo num campo de refugiados na Malásia, em barracas onde dormiam todos juntos, e onde tinham de pisar com muito cuidado nas tábuas de madeira para chegar à fossa séptica coletiva (era deste livro que falei sobre vermes na chuva aqui) enquanto carregava no braço um bracelete de acrílico de prótese dentária com diamantes incrustados.
é terno como ela relata sua acolhida no Canadá — como quando fala de sua professora de inglês, andando à frente das crianças vietnamitas recém-chegadas e desnutridas: sempre lhe serei grata, pois ela despertou meu primeiro desejo de imigrante, o de ser capaz de mover a gordura das nádegas como ela. Kim nunca perde a ternura ao escrever. nem mesmo contra aqueles que tomaram a casa de sua família, construíram um muro no meio dela e os proíbiram de ouvir música. para falar sobre os vietnamitas que lá ficaram, porém, escolhe as mulheres. as mães de soldados que nunca retornaram para casa, mulheres de costas arqueadas que carregam a história invisível do Vietnã, diz em algum momento, carregando carne enlatada entre os arrozais. assim como as mulheres nuas e de pele diáfana que recebem os disparos de notas de cém dolares enroladas em elásticos contra seus corpos.
todos os textos são curtos, os mais longos tem duas ou três páginas. cada frase, porém, carrega o imprescindível. talvez as palavras possam ser tão pesadas quanto objetos que ela deixa para trás sem titubear, porque ela jamais deixa um lugar levando mais do que uma mala. na mala, apenas alguns livros: o restante nunca consegue se tornar realmente meu. é assim que ela parece também tecer seu livro, o que não fosse realmente dela, não era digno de estar ali, entre suas memórias e confissões mais brutais e preciosas. como todo bom livro que agora chamam de auto-ficção, não se pode exagerar, é a pedra que se persegue, e não a nuvem inatingível. é a questão da Annie Ernaux, de escrever só do que realmente se lembra. é a mesma busca de Rachel Cusk pela verdade. a memória nos trai. segui-la é um trabalho penoso, delicado, que requer certa distância.
na página 47, ela diz que conta anedotadas a seu filho Pascal para guardar na memória um fragmento da história que ele nunca encontrará nos bancos escolares. eu, que não sou criança, senti-me assim também: como um presente, o livro nos dá esses fragmentos que poderiam ter se perdido para sempre, como seu bracelete de acrílico com diamantes. e também me desconcerta quando revela que seu ponto de acoragem é o perfume do amaciante Bounce.
as memórias flutuam de forma não-linear nem cronológica. seguem as pistas do que é material: uma voz, um gesto, um gosto, uma vestimenta, uma cicatriz. é a partir desses marcadores materiais e sensíveis, como se fossem fios, que ela enlaça nuances, contos e personagens. e assim, nos conta sobre a família numerosa, sua mãe, seus tios e tias, sua prima Sao Mai, a maternidade, a preferência por paixões rápidas, a imigração. é possível que esse texto que escrevo agora, que tenta concatenear temáticas e preencher os espaços vazios fique maior do que um terço do livro e, com certeza, enfadonho. então, quero apenas juntar linhas dispersas sobre a voz como um fio condutor de suas memórias. mas poderia, também, ser o gesto.
não gritei nem chorei quando anunciaram que meu filho Henri estava aprisionado em seu mundo, diz, quando descobre que seu filho é autista, na página 17. na 18, ela agora criança e recém-chegada no Canadá, conta como ficou atordoada pelos sons estrangeiros, pela mesa coberta de pratos que não reconhecia — eu era como meu filho Henri: não podia falar nem escutar mesmo não sendo surda ou muda. na 19, quando a primeira professora lhe fala meu nome é Marie-France e o seu? ela diz que não tinha entendido nenhuma daquelas palavras, apenas a melodia de sua voz, mas isso bastava. isso porque, responde na 38, eu falava muito pouco, às vezes, absolutamente nada. durante toda a minha infância minha prima Sao Mai sempre falou por mim, pois eu era a sua sombra. graças a uma outra professora ela aprendeu a soltar a minha voz dos recantos do meu corpo para que ela pudesse alcançar meus lábios. em outro momento, quando vai trabalhar em Hanói, diz que sua voz agora era projetada, que ela deixou de ter os trejeitos franzinos e tímidos da menina que fora. conheço o canto das moscas de cor, diz na 37, sobre as fossas sépticas na Malásia. na página 76, conta dos soldados e bêbados que atiravam através da cortina da janela para que seu avô, deitado na cama, se calasse. meu avô, porém, não falava desde o derrame, sofrido antes mesmo do seu nascimento. nunca ouvi a sua voz. na 116, ela conta das vendedoras de sopa no Vietnã. cada vendedora anunciava seu produto com uma melodia particular. seu amigo francês levantava-se às 5 da manhã todos os dias para gravar os cantos delas, que soavam como uma canção de ninar matinal. na última linha da penúltima página ela escreve: um país que já não é mais um lugar, mas uma canção de ninar.
Ru é belamente traduzido pela Letícia Mei e foi publicado pela Âyiné em 2022.
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Seu texto vai me fazer pular a lista de espera. Comprei esse nalguma feira no ano passado. A ayine me seduz com as capas e formatos. Que delicia sua resenha 💫