ando meio espantada com algumas coisas que circulam pelas redes esses tempos; talvez, mais do que nunca, tenha de concordar que o bolsonarismo se introjetou em todas as camadas da sociedade, inclusive na esquerda. o pêndulo da história parece ter se movido o que foi construído lentamente nos últimos 14 anos anda sendo tratorado e terraplanado. não como se espera de uma geração que retorce os olhos para a que a antecedeu, com alguma retórica rebelde, mas com uma agressividade… burra. em último caso, é isto: todo mundo parece mais burro. preciso escrever esse texto rápido porque sequer tenho muito tempo sobrando para escrever aqui no momento, então vai em estrutura de tópicos. foda-se as conexões.
o feminismo no Brasil não conseguiu emplacar a legalização do aborto. as dificuldades são gigantescas: já não basta esse país profundamente religioso, construído sob a imposição de um deus único e seu livro de leis escritas – ainda que abertas a interpretação, como todo texto, mas dentro de um certo limite, como todo texto –, agora temos também uma enorme bancada evangélica que impedem a tão sonhada laicização. nos últimos anos, me fica a impressão que as feministas lutam apenas na contenção de danos, tentando barrar leis mais absurdas e mais agressivas que intentam tirar os pouquíssimos direitos – como no caso de aborto legalizado em caso de estupro.
nesses dias, uma usuária do twitter que sigo de longe – e que não vou expor por sequer conhecê-la, nem achar que ela mereça isso rs – repostou uma imagem de uma mulher com camadas e camadas de base e corretivo de cores diferentes, dizendo que se maquiar é isso, prefere continuar sem fazê-lo ou algo assim. seu tuíte foi invadido por, aparentemente, adolescentes completamente insanas e ofendidas pelo comentário que nem era mesmo uma crítica a elas. chamaram-na de fubanga, meteram sua vida pessoal no meio, e os únicos pontos racionais que conseguiam usar era que maquiagem é uma expressão artística. essas meninas defendem com unhas e dentes uma prática que toma tempo das mulheres, as faz consumirem dezenas de produtos e que é uma das formas de gerar frustração nessa tentativa delusional de alcançar o ideal feminino. também não se importam que as maquiagens são direcionadas somente ao público feminino, enquanto aos homens é permitido exibir suas imperfeições e rugas. estou sendo aqui didática e engessada – de um jeito que eu não sou mais, porque hoje acho um discurso exagerado e quase anacrônico, mas na minha formação como feminista eu tive que encarar tudo isso e respirar fundo. não é fácil ser contra a feminilidade.
sim, eu não so contra maquiagem. nunca me interessei direito por isso, mas sei que é uma coisa antiquíssima, egípcia e etc. que as múmias eram maquiadas para entrar nos céus belíssimas e etc. eu não sou contra a beleza, nem contra a expressão. eu reconheço o prazer de mudar certas formas do seu rosto apenas pincelando-o, desde puxar um delineado para enfatizar o olhar, passando por batons e sombras de cores vívidas, até recriar pálpebras a quem não tem (eu). eu admiro, por exemplo, as maquiagens de minha amiga drag Audácia (instagram.com/audacinha). em suma, eu sou normal. mas dezenas de camadas de base para esconder suas rugas ou seus sinais é um pouco diferente de expressão artística. de qualquer forma, é meu direito (e de quem quiser) não se submeter à esse ritual, que para mim parece um episódio de mania. reconhecer que a necessidade de maquiagem cotidiana é uma prática imposta às mulheres dói, mas não mata. ninguém está apontando uma arma na sua cabeça.
nos meus anos de formação feminista, eu fui introduzida à difícil constatação de que depilar-se é uma exigência de um padrão feminino. eu tentei, tento ainda, deixar meus pelos, mas se vou mostrar demais meu corpo, depilo. mesmo assim, não tem uma vez em que não estou raspando o gilete no meu suvaco ou de pernas abertas para a depiladora no ritual de tortura de cera quente, que eu não pense que depilar é, sim, uma escolha minha. e que eu poderia escolher não me submeter a isso. e, dependendo do lugar onde eu vou, sinto até vergonha de estar depilada. e também vergonha quando esqueço de me depilar, se estou em outros lugares. em suma, minha cabeça vive em constante contradição: mas eu prefiro isso do que pensar que depilar é uma obrigação simplesmente porque me designaram do sexo feminino. eu não achei que a gente regrediria nesse ponto – o ponto é fazer as escolhas com consciência do que elas significam.
fui uma adolescente um pouco rebelde, não alisava meu cabelo, não usava calça jeans (mas sempre raspei as pernas e o suvaco). não gostava (não gosto) de fazer coisas que tomem demais meu tempo, tipo chapinha, ou usar coisas desconfortáveis, tipo aquelas calça jeans de cós baixo dos anos 2000. você recebe menos cantadas, mas existia um prazer em pequenas transgressões. diriam, hoje, que eu fui uma pick me. talvez. a gente nunca tá livre das neuroses e paranoias.
também ontem ou hoje postaram vídeos e fotos da Maiara (da Maiara e Maraísa) magérrima, irreconhecível, com corpo de anoréxica dos anos 2000. nos meus 11 ou 12 anos, anorexia e bulimia eram temas efervescentes, tinham os blogs para a Ana e a Mia, era tema de trabalho escolar, de conscientização e etc. depois de uma enxurrada bem irritante e quase sempre meio boba de body positive dos anos 2010 para cá, depois da moda Kardashian de ser uma pulta gostosa, parece que voltamos, com a bença do Ozempic, à moda das magérrimas. confesso que me incomoda um pouco ver a Rebel Wilson magra. ao mesmo tempo, eu reconheço que devia ser difícil para ela sempre encaixar-se em papéis de alívio cômico e ser reconhecida justamente por ser gorda. até a Adele emagreceu, meu deus.
reconheço a sua dor porque sou uma mulher gorda. não gosto de me ver em fotos, e no espelho só às vezes. passei por dias terríveis pensando se deveria tomar ozempic, que, aliás, uma médica me ofereceu antes da moda. tomo lapadas da minha analista quando sugiro que não sou desejada por ser gorda. não consigo me enxergar do jeito que eu sou, não consigo admitir em mim o que acho bonito nos outros. sou, dias sim outros não, insegura e invejosa. todos os discursos body positive também não me animaram, na verdade me fizeram pensar que tinha algo de produndamente errado comigo por “não conseguir me amar”. mas só agora reconheço que a existência de mulheres gordas incríveis, como a Mc Carol, me fizeram, sim, mais contente, mais confiante. mas porque Mc Carol, num palco, é pura tour de force – não é sobre ser body positive, mas sim sobre ser, com toda a potência possível. hoje, reconheço que a minha dismorfia tem um quê de delírio que atravessa todas as questões da minha vida.
durante o ano II da pandemia, dediquei-me a fazer dieta e exercícios todos os dias, eu que sempre odiei exercício (sou adpeta de yoga… pois é). nunca antes tinha conseguido ficar tanto tempo com uma dieta relativamente restritiva. “deu certo”, perdi seilá uns 10 ou 12kgs. quando a pandemia acabou, junto de outras questões, fui largando tudo que eu tinha conquistado. ganhei tudo de novo e um pouco mais. aos 33 anos, sanfonei como nunca antes, dedilhando asa branca com o meu corpo sem nem perceber. um dos motivos para largar tudo, olhando retroativamente, é que não tive recompensa que justificasse as restrições e a paranoia constante com o peso. eu até gostava mais de me ver nas fotos, e de comprar roupas de tamanhos menores e, por isso, ter a disposição roupas mais bonitas e descoladas. mas eu realmente acreditei que quando eu conseguisse chegar lá, um novo mundo se abriria para mim. um novo eu surgiria. uma mudança revolucionária ia me abalar, finalmente. foi mais ou menos como quando eu publiquei meu livro. acontece que quando se sobe uma montanha o que tem, lá no alto, no máximo, é uma bela vista. e daí cê ainda tem que descer de volta. e às vezes a vista tá nublada. nos dois casos, a minha vista nublou, soou um trovão de tédio ao fundo. a recompensa não foi satisfatória – depois de tanto sofrimento. para escrever, para emagrecer. talvez eu agora comece a acreditar, de verdade e não da boca pra fora, que recompensa é um conceito abstrato, seja inventado por Hollywood ou seiláoque do meu cérebro condicionado ou de hormônio liberado ou seiláoquê do meu trauma de infância – não importa, só não posso acreditar tanto no meu próprio delírio.
o meu delírio é, ainda assim, alimentado todos os dias pelo ideal das imagens de sucesso e magreza. admitir que o ideal é inalcansável dói, mas não tem outro jeito. agora a Maiara tá lá, recebendo comentários estupefatos de gente dizendo que ela tá mal de saúde e cabeçuda. a imagem dela transformou-se radicalmente e ainda assim ela está aquém do ideal.
o feminismo dos anos 2010 era meio torto, mas o padrão de beleza feminino era pauta constante. no tempo de agora, mais queer e não-binário, fico pensando se sobrou, às mulheres que se identificam enquanto mulheres, cis e trans, apenas esse delírio de imagem – e que é vendido como milagre operado por remédios, comésticos e cirurgias. é desconfortável existir. é desconfortável morar num corpo. é desconfortável não ser uma imagem de sucesso e desejo. e, na minha opinião, é preciso que continue sendo desconfortável e, mais do que tudo, contraditório. porque é contraditório. aplacar as exigências estéticas como meramente “expressão” e “sentir-se bem consigo mesma” não faz com que elas desapareçam ou deixem de ser instrumentos do machismo que criam frustrações neuróticas que nos fazem consumir mais e ser mais infelizes. e que tiram nosso tempo. seja o tempo de estudar ou, seilá, fumar um e ver um desenho animado e comer muito na larica (um senhorzinho na praia que me disse essas quase exatas palavras).
Ao mesmo tempo que é reconfortante reconhecer meus incômodos no seu texto, é um saco que a gente ainda esteja falando sobre isso. Quando é que a sociedade como um todo vai simplesmente deixar as mulheres existirem como são? Parece que o objetivo é esse, não deixar.
Essa questão da maquiagem e como a moça que fez o comentário foi atacada também reflete uma total ausência de reflexão das pessoas que habitam a internet; parece que só existem dois discursos, contra e a favor. E isso em todos os temas.
Eu espero que, apesar de tudo que taí pra atrapalhar, você consiga se amar e se sentir bem com o seu corpo, independente da forma que ele se apresente no mundo. Ninguém deveria ter o direito de te dizer como nós devemos parecer. Beijo e obrigada pelo texto!
Disse tudo Mari, tudo o que passamos… em todas as etapas da nossa vida. Fui magra quando era nova, depois que vc nasceu, continuei magra, depois veio Sofia e Gabriel, na gravidez do Gabriel senti-me plena, queria conquistar o mundo com meu lindo abdômen um menino, mas após o nascimento tudo começou a mudar em mim, fisicamente, mentalmente, emocionalmente, hormônios em declínio, e hoje sou acima do peso. Feliz com esse desfecho? Não! Não mesmo, e sempre me cobrando, emagrecer etc, não gostando de mim, acusando-me: tá vendo? Foi comer isso? Não podia! E vamos assim, nesse caminho. Quero ser auto-suficiente e me aceitar. Mas… a sociedade ou nós estamos impondo sempre. Admiro as mulheres fortes, que não se importam, que vivem bem com seus corpos, sejam eles quais forem. E acredito que vc é! Estarei aqui sempre, lendo vc, que é meu orgulho de mulher feminista, escritora e plena. Continue na yoga. <3