o país em clima de Copa do Mundo por causa de cinema? eu não reclamo. não sou fisioterapeuta esportiva nem ligo pra futebol, mas trabalho com audiovisual e pesquiso cinema. algumas críticas me irritam? é claro. talvez seja assim com as pessoas que gostem de futebol e me ouvem fazendo qualquer comentário estúpido vendo um jogo da Copa: então tudo bem. com a diferença de que eu não me levo a sério — porém, em matéria de filme, todo mundo é rei. tudo bem: há aí um alívio coletivo, qualquer coisa que nos una por um ínfimo momento — nós, país fragmentado, rasgado por diásporas, migrações, genocídios e misérias, nós, correndo atrás de qualquer coisa que signifique ser brasileiro — uma ficção.
mas eu também quero torcer.
Ainda Estou Aqui é uma ficção, adaptada de um livro baseada nas memórias do filho de Rubens e Eunice Paiva — ufa, tudo bem, voltemos: uma ficção. não é competência de jogador ou de técnico ou de juiz que está em jogo: embora, sim, um juiz sempre rouba. Fernanda Torres, carioquíssima, tem consciência da catarse coletiva que um Oscar no domingo de carnaval nos enlaçou. se, pelo pouco que sei, o Brasil não está perto de levar uma Copa tão cedo, a estatueta cai bem. cinema também é geopolítica; embora tenha que haver, por cá, alguns esforços políticos para que Ainda Estou Aqui possa nos trazer algo além da sua própria glória e de uma memória feliz e — agora, que Fernanda Torres não ganhou — agridoce.
é óbvio que Ainda Estou Aqui tem orçamento, favores, contatos e a credibilidade que só um Walter Salles da vida poderia conseguir para chegar onde chegou. e que o cinema brasileiro contemporâneo tem outra cara. anda mal das pernas? sim, e pior desde o desmonte do Bolsonaro — mas deixou de produzir belos filmes? não. também abundam as produções medíocres — embora a maioria esteja ligada ao capital e à castração dos streamings. lembram-se das críticas simplificadoras de que Ainda Estou Aqui retrata a elite e não os pobres? pode até ser verdade, embora apontar isso seja como pegar uma onda errada na hora errada. porém aqui reluz mais alguma coisa: o gosto popular pelo filme — das pessoas, da Academia? — está ligada à essa estética glamourosa — estética, aqui, englobando tudo: como a imagem se parece, a riqueza (literal) dos detalhes, da casa, do super-8 e do 35mm, dos travellings — mais parecida com filmes hollywoodianos — e até europeus?
“o pior filme brasileiro nos diz mais respeito que o melhor filme estrangeiro”, não tem como fugir da frase mais célebre de Paulo Emílio, quiçá a frase mais célebre sobre cinema brasileiro já proferida, destinada sempre a ser profecia. o problema é que Caetano Veloso não tem razão: Narciso acha feio o que é espelho, no caso do cinema.
o cinema brasileiro precário, inventivo por conta do baixo orçamento (como Ardiley Queirós), da vida cotidiana (como os Filmes de Plástico) não encontra o público; e, então, temos que nos deparar com críticas tão frouxas como essas que dizem que o cinema brasileiro só retrata a elite. o cinema brasileiro que a maioria vê, bem, talvez seja verdade. e o cinema de época, sim, ainda mais — aqui talvez esteja ligado à própria memória do país: registrar, arquivar, documentar também é uma questão de privilégio. sequer os filmes brasileiros que passam em festivais, como Baby e Malu, chegaram aos cinemas das cidades menores brasileiras — o problema é imenso, histórico e o vento não está soprando ao nosso favor. produzir um filme não custa dois reais, e nem dois milhões: precisa de muito dinheiro — e de muito mais do que se imagina ou se conta por aí para fazer o que se espera: a lógica hollywoodiana, a necessidade de verossimilhança nos deixa piticos. Narciso acha feio o que é espelho e o pior filme brasileiro nos diz mais respeito que o melhor filme estrangeiro — eis o nosso buraco — pois Narciso se vê deformado no espelho: busca incessante a glória, o orgulho em meio aos andrajos que veste.
ontem assisti Anora. para mim, é fácil entender porquê Anora levou a maior parte das estatuetas: é o sonho americano transformado em pesadelo — Cinderela contemporânea. Ani conhece seu príncipe russo, ele lhe promete mundos e fundos e um palácio, uma bruxa inclusive a amaldiçoa dizendo que em duas semanas estaria de volta, o feitiço se rompe, as três fadas madrinhas são três armênios atrapalhados que respondem à família real, no fim ela até é restituída com seu par de sapato de cristal: aliança de 4 quilates e um choro. o pesadelo americano retornou: tudo pintado com tons de imigração e prostituição. Eunice Paiva até pode lhes emocionar, mas não toca no orgulho ferido.
voltemos… estou desviando do que eu gostaria de escrever. por conta talvez do meu objeto de pesquisa no cinema, a voz, gostaria de aventar outras possibilidades de sentir/pensar cinema. as críticas “comunistas” de Ainda Estou Aqui são enfadonhas porque passam ao largo do maior triunfo do filme, as críticas puritanas à Anora também (a alegação de etarismo que as pessoas puxaram d’A Substância, nem vou comentar). a questão da voz, primordialmente, é que toda voz é única — ela denota uma unicidade — e é a isso que eu dedico o cinema, essa arte tão contraditória (vulgar, como diz Claire Denis: é preciso lembrar que cinema não é uma obra de arte numa parede num museu; é preciso lembrar que todo filme passa por um processo de vulgarização, ao menos na distribuição). a capacidade de captar uma unicidade, na figura de uma personagem, interpretada por um ator/atriz, dirigida, produzida, roteirizada, fotografada, captada, montada, sonorizada, colorizada e vendida. ficcionalizada, sobretudo. a ficção encontra os meios materiais (o humano, o mundo) e quando acontece é lindo. quem vê cinema procurando sua própria visão de mundo vai restar decepcionado. isso não quer dizer que quero unanimidade — pelo contrário. para alguns, porém, falta um pouco essa lembrança: uma ficção é uma ficção, e lá desde Aristóteles, tem os seus propósitos catárticos, emocionais.
o que eu mais gosto em Ainda Estou Aqui é a proximidade com a personagem, com a Eunice Paiva, é dar-lhe espaço para que a sua subjetividade transpareça. posso estar defendendo demais o meu peixe — mas assistir um filme em que por uma porção de minutos ficamos dentro, ao lado, embaixo e acima, ouvindo e vendo, uma outra pessoa: uma atriz que amamos, uma certa individualidade, que vai se delineando (ou dissolvendo-se) a cada cena é matéria de cinema. Fernanda Torres sabe disso quando sempre fala de Eunice Paiva em todas as entrevistas: não só porque é a personagem que ela interpreta, mas porque o filme é, sobretudo, esta mulher. há a voz, o rosto, o corpo, uma intimidade — mas que não é como um fluxo de consciência literário: a imagem, o som e a rapidez com que sempre se movimentam — para frente, adiante, mesmo num flashback — sem o poder de voltar as páginas, guardam ainda algum mistério. é preciso ter mistério. talvez por isso eu não tenha gostado nada de A Substância, que é uma alegoria ou, pior, uma analogia. não tô pras alegorias ultimamente.
Malu, filme que estreou em Sundance e ganhou prêmios no Festival do Rio (e não está no Oscar, mas não importa), também traz essa subjetividade, talvez até mais do que o filme de Walter Salles, por desprender-se um pouco dos códigos que ele segue a risca. É sobre a mãe do diretor Pedro Freire, a atriz Malu, interpretada magistralmente por Yara de Novaes, uma mulher presa no tempo, presa numa casa que nunca será terminada, presa na sua glória passada e sede de revolução que nunca aconteceu, na década derrotista (e também democrática) dos anos 90, numa relação violenta com a sua mãe e a sua filha. e como Eunice, também adoece e perde a memória (e as duas personagens, enfim, são inspiradas em pessoas reais, mais especificamente: em mães).
Anora, como falei, também lá tem o seu conto de fadas fundante, a sua crítica alegórica — mas envolve-se, intrinca-se com a sua personagem, interpretada por Mikey Madison. lembro de ter pensado, no cinema, que, enquanto ela está com Ivan, na semana paga e no casamento, ela some por debaixo dos overlapings de diálogo, do caos daquela juventude sem rumo e sem limites, torna-se como eles: apenas uma jovem qualquer. mas quando Ivan sai da casa ela é obrigada a se fazer ouvir: a cena é inteira construída na tensão dela, na sua fúria gritada, irascível. pode ser verdade que Ani não tem muito mundo interior, como alguns críticos disseram. por vezes me veio um lampejo mais da Nana (Anna Karina) de Viver a Vida de Godard do que a prostituta de Noites de Cabíria de Fellini (que li alguma comparação): desesperadamente ingênua, plana e existencial, no sentido de circunstancial.
o que estou querendo dizer? talvez algo a ver com a presença. a presença em cena, a entrega. o prazer ou o desprazer de presenciar personagens contraditórias, mas vibrantes, sejam elas planas ou esféricas. a mudez ressentida ou a histeria. e a questão da memória: cinema é registro, personagens perdem-se ou perdem a memória, mas nem por isso deixamos de olhá-las e ouvi-las, agora pelo viés da sua própria perdição.
e, também, o que fica depois de uma sessão. ver Ainda Estou Aqui foi especial porque assisti com minha mãe e suas amigas, que, diferente de mim, viveram no tempo da ditadura. ouvi suas impressões. e, ali, o ululante de que grande parcela da população passou pelo período em se tornar uma heroína, agradecendo, talvez, porque ser mártir implica perder o marido ou o pai numa sessão de tortura, migrar para outro lugar, não ter a justiça reconhecida a tempo de se lembrar. em Malu eu trabalhei como editora de ambientes e conhecia cada cena, mas, no cinema, entregou-me uma totalidade que ainda me tirou o fôlego — e também pelos comentários do meus amigos que foram assistir comigo. Anora, por outro lado, tocou-me numa esfera meio oculta, que eu até tentei recuar, algo de habitar o espaço entre o sonho e o pesadelo.
é ao entrever uma outra — uma tal outra (sempre romantizada, porque é ficção) — e entrever quase completamente. mas o que falta no quase, eu posso, nesse espelho, me projetar. da velha discussão no cinema: se o cinema é janela — mostrar — ou espelho — projetar, talvez, para mim, seja espelho voltado à janela. conquanto uma quase outra esteja ali e eu possa, nela, ver a sua unicidade duplicada: atriz e personagem, marionete e títere, voz/corpo e artifício ao mesmo tempo.
por fim, o que resta de coletivo no cinema (o que na literatura, se não for um best seller, é difícil): o compartilhamento, a conversa sobre as impressões. o júbilo do público acerca de uma ficção bem privada, mas ainda aberta. em questão de cinema, ninguém é o dono da bola, e há aí uma alegria.
filmes/créditos de imagens:
Ainda Estou Aqui, Walter Salles, 2024.
Malu, Pedro Freire, 2024.
Anora, Sean Baker, 2024.
Difícil deixar um comentário pra vc depois disso tudo. Eu amei, a correlação e tudo mais q vc colocou aqui, Mari!!! Ainda não assisti Malu, vou ver e já pensar nas suas palavras e Ainda Estou Aqui foi muito especial ver com vc. Vi 3x. Anora, gostei desde a 1a vez.
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