há um tempo venho ensaiando escrever esse texto; em determinado momento, eu tinha desistido de vez. já acumulei ideias de textos de interesses mais gerais, porém, abandonar o velório a qual apenas uma pessoa foi convidada, aquela mesma a quem quis idealizá-lo, ou seja, eu mesma, não seria tão narcísico quanto realizá-lo?
há um mês, mais ou menos, descobri que perdi todos os meus textos, grandes, pequenos, de muitas palavras, ruins ou aproveitáveis, rascunhos, projetos – ou seja, tudo que eu escrevi, no âmbito da ficção – desde 2020 (acho), desde a publicação do meu livro de contos, Noturna.
minha hesitação em realizar um velório de escritos perdidos, jamais publicados, e pouco ou nada comentados mesmo com amigos próximos, é que este é um velório que só a mim interessa – já que o corpo do morto, corpo múltiplo, esfacelado e fantasmático das minhas palavras inconclusivas e multifacetadas, só eu conheci. as circunstâncias dessa perda sem backup são banais demais para serem relembradas aqui, nesse púlpito, e um pouco confusas: problemas com a hospedagem do google drive da usp, problemas comigo mesma que confiei numa nuvem frágil e que anunciava sua derrocada, problemas de comunicação, de tecnologia, de distração, de falta de zelo. resta-me o fato incontestável (sim, eu tentei todas as instâncias possíveis) que, sim, tudo que eu escrevi até então foi perdido. digamos que esse corpo velado – duplamente velado, porque nunca fora revelado a ninguém, e que aqui eu tento, pela primeira e última vez, zelar por ele, manter-me em vigília por ele – morreu de um mal súbito, um mal contemporâneo, ou até mesmo, um assassinato culposo.
por isso, escolho, para a cora de flores, narcisos brancos e amarelos.
o mito do Narciso, muito conhecido, conta que Narciso apaixonou-se pela própria imagem refletida no espelho e ali permaneceu até morrer de fome e de sede. escrever tem relação com o espelho, não só porque nós acabamos, invariavelmente, refletindo nossas memórias ou demônios ou fantasias em nossas criações, mesmo que pareçam estranhas ficções – e quem me lembra disso é Camila Sosa Villada, a quem voltarei mais tarde –, mas porque escrever é especular. Narciso foi associado popularmente como alguém apaixonado pela própria imagem, mas poderíamos pensar, por outro lado, que ele estava especulando sobre a sua imagem refletida no lago. o ato de especular é apaixonante, de caráter obsessivo porque infindo, pode obliterar a fome e durar toda uma vida até a morte nos encontrar. ainda assim, para uma imagem se formar na superfície lisa da poça, é preciso alguma luz – no escuro, vemos apenas uma imagem distorcida, sem bordas definidas, uma sombra – mas a dose certa de luz, porque muita luz superexpõe e indefine a imagem tanto quanto a sua falta.
o verbo velar pode significar cobrir-se (com um véu ou tecido), esconder-se ou dissimular, tornar-se sombrio ou preocupado, ou escuro, ficar acordado ao lado de alguém, zelar por alguém, vigiar – o que fazemos num velório –, manter-se aceso, no caso da vela, e, também, diz-se do processo de exposição de um filme fotoquímico à luminosidade excessiva, impedindo a formação da imagem. velar o filme ou aquilo que, nos tempos comuns da fotografia analógica, dizíamos, sombrios: queimou o filme.
assusto-me com a quantidade de significados que velar tem, e quando eu pensei em fazer esse velório em forma de texto – a única maneira de velar um texto é escrever outro –, não tinha pensado o quão precisa é a metáfora do filme velado para os meus textos perdidos. subterfúgios da linguagem; coisas pelo qual, à parte de todos os narcisos, lágrimas e ceras de vela derretidas desse velório, vale a pena escrever. quando um filme era velado, perdíamos as fotos que escolhemos registrar com muita cautela, já que um filme era caro e limitado à 12, 24 ou 36 poses. eram evidências de um mundo que escolhemos guardar para a posteridade e que se desfacelaria invariavelmente, seja uma festa de família, uma viagem, um alguém querido, um lugar descoberto pela primeira vez, uma luz que nunca mais se repetirá, um fragmento estático de um momento único de uma vida. escrever, fotografar é registrar. é tornar a memória, coisa tão abstrata, palpável. o mundo a qual fotografamos pode não ter deixado de existir com o filme velado, porém não temos mais em mãos aquilo que lhe dava uma concretude, uma forma fixa de lembrança. logo as fotografias, que gostamos de mostrar aos parentes, amigos e visitas, e cujas melhores ou mais significativas expomos em nossas salas, e que, num dia de feriado perto do natal, sozinhos, tiramos a poeira das caixas dos álbuns, para revisitarmos quem, com quem, quando e onde fomos e estivemos.
uma luz velou meus textos. estendo agora luz da vela desse velório sobre eles: é o que me resta. uma pequena chama bruxuleante alumia uma parte, um detalhe, uma massa disforme do que eram.
um pouco depois que eu soube que não poderia recuperar meus arquivos, fui à mesa de Camila Sosa Villada na feira do livro; entre as risadas que a escritora espirituosa, combativa e autoconfessa narcisista me fazia dar, ela leu um pequeno trecho do seu livro A viagem inútil que falava de apagar palavras, de jogar fora textos, de amassar ou queimar papeis escritos. do alívio que é, da possibilidade que se abre na brecha do apagamento, de algo novo surgir. comprei o livro, claro. tenho ele aqui, agora, e para falar a verdade, não o terminei; sinto um pouco de inveja dela porque seu ensaio sobre escrever foi publicado e celebrado, e eu me senti uma estúpida por querer lamentar a perda de textos que ninguém nunca leu – na íntegra – e que ninguém sentiria a falta. mas, engraçado, não encontrei ainda a passagem que ela leu na mesa. no fim do livro, no entanto, ela fala de algo que conversou com a minha dor (e com a minha inveja): o seu arrependimento por ter apagado o seu antigo blog. diz ela que quando começou a carreira de atriz, não queria que as pessoas soubessem de seu passado de prostituta, e apagou tudo, todos os textos. porém, um dia, recebeu no e-mail alguns textos que um admirador tinha guardado. ela os lê e diz: me encontro de novo comigo mesma e sinto muita raiva por ter tentado me apagar assim, apagar o que fui, por vergonha.
já eu não apaguei deliberadamente meus textos – na verdade, eu achava que tinha tomado as precauções necessárias para mantê-los salvos. mas, para ser generosa comigo, ali estavam tantos textos e projetos de livros, que nunca viram a luz, que nunca foram publicados em lugar algum, nem aqui ou num blog qualquer, nunca se tornaram um pdf ou um docx para um amigo – que por mais que ele nunca o lesse estaria guardado em algum lugar –, ou seja, entulhavam-se num conteiner, por vergonha. o amigo de um amigo da computação que eu recorri num último ato de reaver meus arquivos que usou essa palavra, conteiner: para me explicar a gravidade da minha perda, ele disse que é como se eu tivesse deixado um papel num conteiner sob a guarda da usp e o conteiner pegou fogo. sim. o conteiner.
a imagem do conteiner, antes de pegar fogo, também me serve: eu andava entulhando zilhões de palavravinhas em versões datadas de cada projeto de livro, talvez mais de 500 páginas de palavras inéditas, fora os contos que já nem recordo, incluindo um projeto de ficção a qual me entreguei obsessivamente em setembro do ano passado e do qual eu ainda tinha insights para conseguir continuá-lo depois da centésima página (sofro da maldição da centésima página: ao chegar perto do cem, eu largo o texto, enjôo de tudo). tudo isso amassado, desorganizado dentro do conteiner: um verdadeiro cenário de acumuladora, da qual tenho tendências. então, não foi pelo acúmulo perdido que eu mais sofri. sofri pelo que Camila Sosa Villada fala depois de contar seu blog perdido.
ela comenta sobre a leitura pública de seu livro de poemas que fez em homenagem ao blog perdido: tive a sensação de que o livro não tinha sido escrito por mim. e, conclui: um estado de espírito dita as palavras, um estado de espírito tão mutável que me distancia do que fui capaz de escrever antes. eu sinto que perdi a materialidade de todos os meus estados de espíritos dos últimos quatro anos, e que nunca mais poderia acessá-los, o que fui capaz de escrever antes – para ser sincera, eu achei que depois de perdê-los, não sobraria eu, que eu era feita deles; meu espanto maior foi ver que eu continuava eu, viva, com um corpo. Camila, então, fala de como se reconheceu em apenas três dos vinte poemas do seu livro e de como ela se odiou e se culpou pelo que estava escrito. a maioria dos meus textos também nunca mais seriam terminados, eram acúmulos de um conteiner abandonado – meu estado de espírito, que é muito volátil, tinha mudado antes que eu pudesse terminá-los, antes que eu vencesse a vergonha ou que eu conseguisse atender ao meu desejo, não sei, aquilo que me falta para terminar um livro, aquilo que eu fiz um dia, mas não me lembro mais como. o que eu lamento são os vislumbres daquelas fotografias veladas; o que de mim se perdeu.
lamento pelo meu livrinho infanto-juvenil que se chamava A Jabuticabeira que eu queria que meu irmão lesse, e que era uma forma de homenagem à jabuticabeira do quintal da minha avó paterna – que era acumuladora, por sinal – onde eu e meus primos nas férias de julho enchíamos potes de sorvete e bacias de plástico azul com jabuticabas, mas que não era sobre isso: contava de Lucy, uma criança de 10 anos de gênero indefinido que tinha escolhido o próprio nome, e que tinha sido mandada a um sítio de umas tia-avós que desconhecia por conta de uma enfermidade da qual ela não sabia detalhes e que a fazia convulsionar, mas que chamava as convulsões de estribuchar, com i mesmo, o que me fazia sempre ter de ignorar as correções ortográficas, e que ao comer uma jabuticaba do sítio ela ganha algum tipo de poder estranho e passa a ver as tia-avós como animais, Fabiana era uma galinha, Teresinha um teiú e Amara um boi branco, e que com a ajuda de sete crianças da fazenda vizinha, livra-se do encantamento que a fazia ter alucinações como ouvir cogumelos fluorescentes falar e de se transformar numa aranha que, com seus oito membros, estribuchava, e que eu nunca direito acertei o final: ela e as sete crianças seguiam por um rio, numa canoa improvisada, e chegavam à um sítio onde as jabuticabas não eram encantadas, e as tias-avós eram normais, mas as crianças tinham ficado do outro lado do rio, e eu não gostava desse final.
quase não lamento por Olhos Amarelos, um livrinho juvenil sobre duas garotas na idade escolar que se apaixonam, uma delas transforma-se num gato e invadia os sonhos da outra, passava-se numa cidade que eu me inspirei em Santos e só lamento pela perda da descrição do porto e seus contêiners coloridos e de uma trilha que levava à única praia onde se podia banhar, onde havia também uma pequena caverna, mas cuja história, no fim, tinha a mesma tônica do filme nacional Sem Coração que só foi lançado esse ano, porque a protagonista se descobria também como forma de peixe nos sonhos, e que a história de invadir sonhos eu roubei do meu amigo Renato José Duque, e que era um despejo de animes que eu vi já bem jovem adulta sobre paixões juvenis entre meninas, sendo uma delas linda, mágica e misteriosa o que tornaria a outra, que era desengonçada e triste, também linda e mágica, e o mistério se finda num último beijo na praia.
também pouco lamento por serra do mar ou murmurações, uma ideia que me ocorreu enquanto eu via a serra do mar através dos vidros de uma van voltando de Peruíbe, e que era uma homenagem à serra do mar que eu via tantas vezes nas voltas e idas das minhas férias no Guarujá no carro dos meus avós, mas que não era sobre isso, e sim sobre uma fotógrafa jornalista que é obrigada a atravessar a serra do mar de madrugada no carro de um assistente meio bobo e novinho e uma jornalista com quem ela já teve um caso no passado, mas que agora, era casada com outra mulher e tinha uma filha, e que nessa viagem, ela relembra todas as vezes que os seus pais brigavam na serra do mar, porque a mãe não queria atravessá-la com medo de cerração e acidente e o pai era louco por viajar através dela, e numa dessas brigas sua irmã saiu do carro e se embrenhou na mata, irmã que tinha morrido com 16 anos, e a história seguia entre passado e presente, e no presente tinha todas as pulsões eróticas que eu me entrego sem vergonha quando estou escrevendo, porque a fotógrafa acaba meio que trepando com os dois, mas quando tá tentando trepar com o novinho porque tá com raiva da jornalista que começou a falar da esposa, ela ouve um chamado, e meu deus, ela se chama Ágata porque a mãe é meio mística, então ela ouve Ágata, e vai atrás como se fosse o fantasma da irmã, mas a irmã não morreu na mata, e eu tinha enfiado um monte de coisa no meio, um motivo militante para justificar escrever aquele texto que era só um despejo de sentimentos recalcados e, eu hein, este eu nunca publicaria, e acabou ficando sem final porque eu não me decidia se era o fantasma da irmã, alucinação, a própria serra do mar, ou algo a ver com uma queimada de uma ocupação por uma reintegração de posse, e murmurações são aquelas formações de aves no céu, que é o que ia aparecer depois da voz misteriosa.
lamento até demais o livro que comecei a escrever antes do noturna ser lançado, e que começou chamado Dilúvio e quando a Karol com K lançou a música Dilúvio eu fui buscar um outro título e encontrei um verso perfeito em Metamorfoses do Ovídio, que era Já tudo é mar, o projeto que mais vezes enviei ao proac, e que era tipo uma ficção especulativa que começava com uma travesti ouvindo um barulho ensurdecedor no meio do mar de uma vila de pescadores paradisíaca, e o único que ouve também é um pescador que está pescando no meio do mar e vê um redemoinho se formar, e travesti e pescador se amam, apesar de ela viver com um médico psiquiátrico de família de ciganos que passou a infância a beira do Mar Adriático e veio parar nesta vilinha do Brasil, e esse médico escreve sobre o que os dois ouviram no mar porque acha que é a profecia do fim do mundo, e então acontecia a profecia de Caríbdis, três vezes o mar sorviu, e travesti e pescador despencam do mar na terceira vez, que abre um buraco enorme com o redemoinho e passam-se cem ou mil anos, porque nunca consegui definir os tempos, e na segunda parte do livro acompanhamos uma arqueóloga que namora uma outra mulher que é uma espécie de ciborgue-poeta (meu deus) que encontra os resquícios dessa canoa no fundo do mar com as duas múmias, a travesti e o pescador, preservadas, e eu juro que pesquisei condições ideais para a mumificação natural de corpos, e que, então, a discórdia entre elas sobre como agir diante dessas múmias e de uma pérola negra que o médico tinha dado a travesti vai causar a separação do casal; e o primeiro ato era a paixão, o segundo a separação, e o terceiro uma espécie de reparação, não sei bem porque nunca cheguei a escrevê-lo, e fiquei perdida nos meandros desse mundo distópico que, esqueci de contar, o mar invadiu os continentes, mas as montanhas e cordilheiras submarinas, por sua vez, emergiram, como se fosse um desiquilíbrio das águas e não o excesso, e as cidades tecnológicas agora eram construídas no alto dessas cordilheiras marítimas de rocha preta, uma ideia que acho ainda romântica e que de científica não tem nada, e por ser um pouco mágica demais, escapava um pouco dos nossos problemas reais de aquecimento global, e meu deus, eu amaldiçoo o proac por nunca ter me dado uns pontinhos a mais, porque eu nunca mais vou escrever essa história – e não por causa da história, mas por causa da linguagem, porque eu andava a ler portuguesas, e as portuguesas são barrocas e excessivas, e era difícil de ler e propositalmente elíptico e alguém deveria ter me falado para eu largar a ficção científica e ter ficado só com o romance, com as paisagens, com os personagens a quem eu passei meses conversando com muito carinho, por quem nutri bastante amor.
e o último, o mais recente, se chamava talvez Quando o sol dilatar mas também já se chamou Plathianas e platinadas, um nome terrível, que era formado por contos cujas personagens se entrelaçavam e até que formou uma história, porque começou com um conto para sempre perdido de uma escritora e editora de sucesso que ama tanto um outro homem, um poeta fracassado que não lhe quer mais, e ela deseja ter um filho dele, e assim invoca fantasmas de mulheres suicidas como sylvia plath, virginia woolf e amy winehouse (eu sei, eu sei), e o fantasma de sylvia sugere que ela fique grávida do homem e assim, sim, ela fica grávida, mas perde o bebê, e o terceiro conto era de uma adolescente grávida que não diz a ninguém de quem é o bebê, porque não sabe se era do seu namoradinho ou do professor durante a ocupação das escolas em 2016, e neste livro eu tinha lido elena ferrante e queria falar sobre o tempo histórico de todas as transformações recentes para não perdê-las, dos protestos de 2013, passando pelas ocupações de 2016, e impeachamant da dilma, e bolsonaro, e pandemia, mas enfim, esta adolescente tem os cabelos platinados e os cabelos escuros começam a crescer na raiz e ela quer pintá-los, porém a água oxigenada poderia matar aquilo que cresce em sua barriga, e ela pensa inclusive em beber a água oxigenada e platinar seu interior, mas não o faz, ao invés disso, fica obcecada com as fórmulas químicas dos produtos e passa os dias imitando uma cadela, e então sua irmã, que aparece no segundo conto e que tem uma rixa com a sua prima que era um pouco mais rica que ela, e as duas são dentistas, porque eu tinha ouvido uma conversa de dois dentistas no ônibus, e fiquei interessada pelo universo dos dentes, e pensei logo nessa personagem que tem os dentes muito brancos e que quer ser dentista por isso, e daí veio a sua prima que tem os dentes feios e também quer ser dentista por isso, enfim, esta dentista organiza um chá-de-bebê-churrasco-na-laje porque pretende oferecer o bebê da irmã adolescente para a prima dentista dos dentes feios que não consegue engravidar, mas dá tudo errado – ela é bolsonarista, ai meu deus, que simples eu sou – e quem acaba adotando é a prima lésbica, Cora, que é uma homenagem a minha professora de história do colégio que foi acusada injustamente de estar pegando uma aluna com quem jogava futebol na quadra da escola depois das aulas e teve de tirar licença por depressão; e eu sinto saudades ainda desse texto e principalmente desse chá-de-bebê, pois não foi fácil escrever uma cena com tanta gente, eram umas seis primas e umas quatro tias, e o capítulo em que Ariela, a adolescente grávida, dá a luz e Cora pega o bebê nos braços eu também gostei muito, ufa, e continuava a partir dali com histórias de outras primas, um gay e o namorado poeta que virava cineasta e que envolvia inveja e tesão e que não foram para frente, mas eu lamento mesmo, é uma perda recente – e com certeza não era bom, mas isso não importa, porque tudo isso foi perdido.
e, ufa, tudo isso foi perdido; e eu também senti alívio. espero que você sinta esse alívio comigo. e perdão pelo jorro, mas é a única maneira de velar textos perdidos e que já se esvaem da memória.
como disse Camila Sosa Villada, eram meus estados de espírito, todas as nossas virtudes e defeitos postos em palavras que não dizem nada mais do que todo esse mar de petróleo que somos por dentro. mas apesar de tentar aqui reter alguns fotogramas do que foi velado mas que nunca mais vai ser aquilo que era para ser, mesmo se eu me propuser a escrevê-los de memória, porque, no fim, as histórias não me importam. me importam as palavras, a forma como elas se amontoam ou calam. e isso as velas desse velório não podem iluminar.
Camila, então, cita Borges que diz que a literatura é um ato de amor e me oferece uma mão, um abraço, um chá quente, a mais bela oração nesse velório de um fantasma mesmo que não me conheça – essa é a magia da literatura, a autora sussurra o que precisamos ouvir ao pé dos nossos ouvidos sem saber quem somos ou se isso seria útil para além dela mesma – e me faz lembrar que não escrevo só porque sou torta; quebrada; incompleta; narcísia especulando no poço, echo repetindo palavras. Ela diz que tudo isso que escrevo nada mais é do que um ato de amor por mim mesma, e que às vezes sou tão estúpida que não consigo enxergar isso. não consigo ver o carinho que proporciono a mim mesma quando escrevo. um carinho desajeitado que muitas vezes se parece com um golpe, mas é assim que as fêmeas transportam seus filhotes, mordendo-lhes a pele do pescoço sem causar dor.
um ato de amor por mim mesma: perdoem-me por especular tempo demais sobre este corpo que é um outro eu; mas eu não saberia mais onde eu poderia fazê-lo. para deixar de ser Narciso, não basta ser Rita Lee e dizer não fiz backup, perdi tudo, foda-se eu: minha amiga Mariani Ohno me contou que Rita Lee na verdade não perdeu tudo de verdade porque mandava o que escrevia por e-mail para Roberto de Carvalho e ele guardou tudo, eis aí, o ato de amor – fruto de um dos mais lindos exemplos de amor entre duas pessoas.
e espero que eu também consiga confiar, aos meus queridos e até aos desconhecidos, esses pedaços do meu espírito, porque se eu estivesse satisfeita em escrever só para mim, eu não teria sofrido tanto.
e muito obrigada por chegar até aqui, se você chegou, agora é descer o véu e deixar o corpo queimar em paz.
Sinto muito Mari, sinto tanto que nem sei o que dizer, talvez esse compilado do que vc perdeu, escrito aqui foi uma catarse que vc precisasse, não sei… e sim, gostaria de ler todos esses, mas não estão mais aqui e agora em frente, sempre em frente. Sua escrita profunda e bela irá iluminar muito esse mundo ainda. ❤️
o fim do drive infinito realmente foi uma tragédia silenciosa pra toda uma geração de uspianos.......
mas fiquei com mta vontade de ler as historias