a depressão abre um espaço de possibilidade justamente porque as coisas deixam de funcionar suavemente. (Donna Hawaray)
esta é uma fala numa conversa de Donna Haraway, transcrita por Clara Schulmann, uma leitura leve que tem a ver com o meu mestrado e, ao mesmo tempo, não pode me ajudar academicamente.
eu li no ônibus ouvindo Mahler. não, eu não escuto música clássica. é que eu vi Tár ontem. e, no fim, ficou um gosto de quero-mais. de Mahler. de quem tudo que sei tá lá no filme.
eu coloquei o fone de ouvido porque, para falar a verdade, a mola do ônibus duplo rangia muito. e, sobre a mola, havia um grupo de adolescentes falando alto. mas por mais que eu tentasse entender o que eles falavam, eu não conseguia. parecia uma outra língua. por uns instantes eu fiquei investigando se era mesmo uma outra língua. às vezes acontece, nos ônibus da USP.
eu coloquei música clássica porque uma canção poderia atrapalhar a leitura. eu coloquei Mahler porque já disse o porquê. foi o primeiro que veio à cabeça. eu não costumo usar fone de ouvido na rua. como se eu tivesse que estar atenta à realidade o tempo todo. ou para não falar alto, sem querer, ou cantarolar.
mas é bom. depois de expressar meu ódio a uma pessoa qualquer que me pediu licença onde não havia nada o que eu pudesse fazer, desci do ônibus. a lua brilhava, única e solitária, no céu preto. linda, ela flutuava como uma bola de luz sublime e terrível acima do cemitério da consolação. uma santa de pedra com as mãos abertas, olhava de dentro do cemitério para a rua. todos os dias eu passo aqui, nenhum dia eu tinha reparado nessa santa, abençoando os passantes da rua, como se cansada de velar o seu morto. e tinha a lua. e, ao fundo, a gigantesca antena. e a frase da Donna Haraway no mesmo compasso de Mahler.
penso que é algo que eu entendi devido ao feminismo. a insistência em um tipo de relação não hostil com o corpo mortal, com as suas panes.
essa é a última frase transcrita dessa entrevista.
ontem foi a primeira vez que eu me dei conta, realmente, que eu moro sozinha. e que eu posso fazer o que eu quiser. então eu fiz uma coisa que eu nunca fiz antes.
foi doloroso e esclarecedor.
ontem eu desci do ônibus correndo porque três homens tinham me olhado e rido de mim.
o que eu fiz me levou a dormir muito tarde. e, por isso, meu dia hoje foi improdutivo. não posso ter dias improdutivos. eles acabaram. minha data-limite de qualificação tá aí. não eu nem deveria estar escrevendo aqui. é isto que eu queria dizer: eu não vou escrever aqui, provavelmente, até isso terminar. mas hoje eu tive vontade.
de escrever sobre nada. e sobre como eu demorei alguns meses para finalmente me dar conta do que é morar sozinha.
há algum tempo, eu sinto como se tudo que eu fizesse dependesse dolorosamente de mim. ninguém, além dos meus gatos, depende de mim. eu não dependo de ninguém. comer e tomar banho depende de mim. acordar, sentar e trabalhar depende de mim. a minha qualificação, etc.
às vezes a única imagem que eu consigo relacionar é aquela clichê, de um homenzinho com o mundo nas costas. mas ninguém depende de mim. o mundo nas costas sou só eu mesma.
minha analista constantemente fala de pensamento mágico. eu não sei o que quer dizer pensamento mágico direito.
mas hoje, ouvindo Mahler como se fosse o tipo de pessoa que ouve Mahler (não sou) e lendo frases um pouco francesas demais e, por isso, burguesas e inspiradas como suspiros (suspiros: o doce e o movimento do ar que garotas belas fazem sentadas em jardins floridos), pensei que há um tempo tenho dispensado a magia da minha vida.
tenho podado meus delírios.
tenho deixado de encenar. não vou procurar agora, mas Virgina Woolf falou em algum lugar que ela cria sua escrita afim de chegar na cena. é a cena que importa. na vida real, uma cena se distingue do resto. algo que pode-se guardar na memória. a lua cheia. a santa cinza. a antena colorida.
vez ou outra volta uma passagem de algum dos livros da trilogia da Rachel Cusk em que ela descreve uma casa toda de vidro. e que, de fora, pode-se ver as pessoas vivendo, como se estivessem encenando. elas cozinham, jogam cartas. riem, falam. sentam-se à mesa.
Cusk na verdade desdobra isso em vários momentos: a casa de vidro, a encenação performática no cerne da vida real. ou a vida como um teatro, como uma obra de arte, como um romance, uma poesia, um filme.
o que é isso, um filme? (Boca Rosa).
morando sozinha, às vezes, percebi que tenho de supor que alguém está me assistindo. se ninguém me assistir, talvez eu suma. desapareça. desvaneça feito a fumaça do meu cigarro. e quem vai me assistir? eu mesma.
talvez eu tenha tanto chegar ao real livrando-me de todas as fantasias espalhafatosas e difíceis de organizar que acabei parando aqui. nesse lugar insípido. sem suspiros. há um tempo, intermitentemente, tenho uma crise que chamo de despersonalização, mas não sei se é isso. como se eu não fosse eu. e me olhasse de fora.
não vou falar disso.
mas talvez seja um aviso. Cusk tem razão.
peixe na glote, até mais. volto, se não me der um treco desses de novo, no fim de maio. peixe na glote. sabe, outro dia tava pensando nesse nome que eu escolhi. se um peixe atravessa tua glote – hum – engasga? ou fica mudo? um peixe sempre atravessado na glote faz de você uma muda. ou alguém que fala como um peixe. se for um peixe bem pequeno, nadando na glote. hum. toda vez que você fala, ele roça na sua garganta.
o que você escreve traduz umas partes minhas que eu nem tive coragem de falar em voz alta ainda. obrigada (acho!) <3