agosto mês desgraçado e eu não tive nem tempo nem inspiração pra voltar aqui. agora que o tempo sobrou, a inspiração ainda meio cambaleante. entre falar sobre o fim do twitter e meu vício terrível que me faz abri-lo cinco vezes ao dia para ver o mesmo RT de um tuíte do Supla The last C’mmon Kids e um anúncio de bet pavoroso, escolho falar de alguns dos filmes que vi durante a semana.
Alien: Romulus (Fede Alvares), e Alien de Ridley Scott que eu revi, Cidade; Campo da Juliana Rojas e Motel Destino de Karim Aïnouz: poderiam ter algo em comum? dentre as múltiplas perspectivas que um filme oferece, tentar entender como eles traduzem os anseios do tempo é um exercício que me apetece.
Parto do pressuposto de que Alien: Romulus é uma adaptação bem-sucedida de Alien e da atmosfera de ficção científica e terror dos anos 80, ou seja, um mix de Alien e Blade Runner, uma homenagem à Ridley Scott no seu auge. o que significa bem-sucedida? ora, aqui tem relação com o gênero e a estética, e também com as exigências atualizadas de Hollywood que, me parece, não tem cacife para bancar riscos como outrora. a colônia de Alien: Romulus é esfumaçada e ocre, algo entre Blade Runner e Mad Max. Se nesses dois universos distópicos os personagens não vão partir para o espaço e têm de sobreviver aqui mesmo, a motivação dos personagens do filme de 2024 vem do desejo de fuga. o tema da fuga, aposto minhas fichas, será ou já é o zeitgeist dessa década. nem melancolia nem resistência: escapar para outro lugar onde poderemos, enfim, sermos felizes; os recursos e a população estão, ambos, esgotados, contaminados e sem possibilidade de recuperação.
Cidade; Campo é um filme, segundo a diretora, sobre o deslocamento. dividido em duas partes independentes, a primeira conta a história de Joana, uma personagem cuja terra foi invadida pela lama do rompimento da barragem em Minas Gerais — um trauma de proporções coletivas que, até agora, não teve tanto destaque nas ficções brasileirais — e que muda-se para São Paulo. a segunda história é sobre um casal sapatão, Mara e Flávia, que se muda para o campo: o pai de Flávia, dono de um pedaço de terra que parece improdutiva, morreu. diferente da narrativa hollywoodiana globalista, a fuga, no Brasil, é motivada por fatores externos: tragédia ambiental e luto pessoal, respectivamente. Motel Destino parte, justamente, do desejo de fuga do protagonista Heraldo: no primeiro diálogo com seu irmão, ele explana o plano de se mudar para São Paulo. seu plano, porém, não se concretiza e ele acaba ficando preso dentro do tal Motel Destino, envolvendo-se com o casal que gerencia o lugar.
em Alien: Romulus o desejo de fuga também acaba aprisionando os personagens dentro de uma estação em que os aliens — sim, agora no plural — multiplicam-se e caçam seus hospedeiros, como o bom parasita que é. os ecos do primeiro Alien manifestam-se: o seu sorriso cínico de dentes prateados, a mini-cabeça dentro da cabeça grotesca, a criatura polvo-sanguessuga que se acopla à cabeça da vítima e enfia-lhe pela goela o falo esponjoso. e também, a aparição do sintético (ou ciborgue ou robô ou AI) que serve à corporação no primeiro Alien, e até uma ou outra citação de diálogo, como quando o novo sintético, ao matar o alien, chama-o de bitch, depois de uma pausa de hesitação. bem, o que há de substancialmente diferente então? além de um novo alien que nasce do ventre da grávida e ganha rapidamente uns três metros de altura e a aparência de um verme branco com braços, pernas e dentes de um bebê disfórmico, a escolha de idade dos personagens. isso recalcula a rota do primeiro Alien: pilotando naves e até (!) fumando cigarros, eles tem apenas uns 18 ou 20 anos. a protagonista recebeu o nome de Rain — talvez numa tentativa de ligá-la a Ripley, primeiro por sonoridade, segundo por semântica: se rip é riacho, a chuva é tanto a evaporação de um corpo d’água, feita da água de Ripley, quanto voltará a sê-la, o que é bastante presunçoso — e é interpretada por Cailee Spaeny. a atriz de 1,55 e rosto juvenil parece ser a nova aposta de Hollywood, já que também estrelou em Guerra Civil. ela exala uma energia bem diferente dos 1,82 de Sigourney Weaver e seu rosto inesquecível. não é novidade para ninguém que Ripley só não é sapatão porque talvez não fosse bem aceito na época, mas ela exala lesbiandade em tudo que lhe cabe: voz, gesto e alma. além disso, é dura, pouco empática com os seus colegas de trabalho, afinal, é apenas uma operária de uma nave de mineração — seus maiores esforços são para salvar o gato, outro índice de sua alma sáfica. em Alien, estamos dentro dos anseios operários de uma tripulação marítima que esbarra em hierarquias, ordens que não podem ser desobedecidas, questões salariais, coisificação das subjetividades, luta pela sobrevivência e impotência diante de uma grande corporação sociopata. em Alien: Romulus, somos jogados dentro do universo juvenil, sua desobediência impulsiva e individualista, dos traumas familiares, do desejo de fuga adolescente. em Alien, eles queriam apenas retornar para casa depois de um extenuante trabalho (que acaba matando quase toda a tripulação). em Romulus, a esperança é nunca mais voltar para casa. em Alien, o body horror está intimimamente ligado ao sexo, o alien é, afinal, um estuprador. o corpo de Ripley é desejado pelo olhar do alien e da câmera e, por isso, invariavelmente, por nós, espectadores. em Romulus, ficamos com o puro body horror, o desejo sumiu: a protagonista, um pouco andrógina e assexual à moda de Hollywood (quase uma Riley de Divertida mente 2), não deseja nem é desejada, e sequer poderíamos imaculá-la com alguma perversão. ela é boa, empática e tenta salvar a todos. limpa, faz a gente sentir falta do suor brilhante de Ripley.
essa recusa ao sexo — que não chega a ser uma repulsa, veja bem — parece tanto uma diretriz de Hollywood para tornar palatável um filme de terror que alude à violência sexual para todos os tipos de público, respondendo ao puratanismo de parte da geração Z que deseja um botão de pular sexo na Netflix, tanto quanto um medo de se arriscar. felizmente, isso não acontece no cinema brasileiro ou, ao menos, nos outros dois filmes que esse texto tenta tratar. o sexo em Motel Destino é visceral, animalesco, sempre suado e risonho, Heraldo, o protagonista, trepa como um coelho e conseguimos ouvir até o som das suas estocadas. grande parte da banda sonora é composta de gemidos do motel. até os burros trepam e gemem. nas luzes vermelhas e azuis, essas são as cenas mais deliciosas do filme, cujo tesão sempre volta-se para o corpo do homem: numa das últimas cenas, Karim enquadra a bunda de Heraldo e Nelly Quettier, a montadora, corta antes que a bunda de sua amante cubra-a. em Cidade; Campo, as duas lésbicas primeiro dançam sem camisa num jogo de sedução íntimo para mergulharem numa cena de sexo lenta, sensual, entrecortada por planos próximos. e é principalmente o corpo de uma mulher gorda que é investigado com sensualidade pela câmera e pela mão de sua parceira.
muito se diz do cinema sensorial — o cinema que, ao invocar sensações táteis, provoca uma resposta no corpo de quem o assiste. estamos assistindo, filme após filme lançado, investigações cada vez mais intensas nesse sentido, em que o corpo não é só tocado, mas dilacerado, perfurado e modificado, como em Crimes of the Future (Cronenberg, 2022) e Titane (Julia Ducornau, 2021). Motel Destino não se furta ao clamor de provocar tesão nos espectadores — estes, encerrados numa sala de cinema escura e a mercê do tesão dos personagens — e de afirmar que, embora a vida do protagonista corre perigo, ele ama fuder, mas que fuder também é um risco, um perigo. no confronto na praia entre dois personagens, as quebras de eixo também são capazes de nos lançarmos entre os dois, atrás, à frente, multiplicando a sensação temporal. Cidade; Campo tem outra tônica, os close-ups intentam ser táteis, não só do sexo, mas como da sensação de pisar na terra descalço. Juliana Rojas também quebra a narrativa em cada história, através de uma outra arte — o que chamaríamos, se este fosse um texto acadêmico, intermidialidade —, como se o cinema narrativo recorresse a um outro tipo de representação para traduzir o intraduzível: uma emoção, um pressentimento, um sentimento. na primeira parte do filme, Joana canta à la musical sobre o seu cavalo Alecrim, que morreu por conta da lama, como uma forma de lidar com o luto. na segunda, Mara dança e liberta os animais presos enquanto Flávia tenta arar a terra, simbolizando a sua reação à sensação de morte que as rodeia. embora eu ache que, no caso da dança, não tenha chegado lá, a arte da voz e a arte do corpo são as responsáveis por incorporar ou traduzir algo que não pode ser dito, nem mostrado pela narrativa. tanto Motel Destino quanto Cidade; Campo manipulam bem essas sensações táteis, mas, mesmo assim, tropeçam no calabouço das palavras explicativas: longos textos nas bocas de atores não tão experientes escorregam, quicam, a tudo esclarecem e acabam frustrando o espectador que, através dos sentidos, já tinha embarcado naquela viagem. apesar do risco que assumem, titubeiam em realmente entregar-se a ele — e deixar o textão para os espectadores falarem no bar pós-filme ou numa review do letterboxd.
não é como se Alien: Romulus não tivesse diálogos desse tipo, porém o tipo de resposta que o filme exige do corpo do espectador, por vezes, deixa difícil até avaliar a qualidade dos diálogos. não sei se é porque eu assiti o filme no imax, mas ando realmente intrigada com o que os últimos filmes que eu vi no imax fizeram comigo. se em Duna eu me senti deslizando acima do verme gigantesco, inteira tensa, e em Guerra Civil eu tomei susto com os tiros, Alien: Romulus me deu ambas as sensações e ainda provocou uma nova: enjôo. na cena em que não há gravidade, o balanço da câmera atacou meu labirinto, e eu tive que desviar meus olhos da tela imensa — impossível — por causa do enjôo. eu que, como toda criança, sonhava um dia voar leve sem gravidade e dar piruetas no ar e ver os líquidos se aglutinarem, dei-me conta que, provavelmente, ficaria é muito enjoada e o líquido aglutinado seria meu próprio vômito. mas, e aí, cinema sensorial, body horror, terror ou brinquedo de parque de diversões? fiquei tão tensa na reta final do filme, em que a narrativa não dava nem trégua, nem alívio cômico (saudades do gato do Alien original), que tive de relaxar minha mandíbula e dizer a mim mesma que aquilo não passava de um filme, porque se não, eu explodiria de tensão e o alívio demorava a vir. bem, acho que sou uma pessoa sensível e isso não se aplica a todo corpo, mas eu só posso experenciar através do meu. ainda assim, acho que alguns filmes, como estes, são muito divertidos de se ver no imax.
quanto à pergunta: cinema ou parque de diversões? tem espaço para os dois. se avisto um perigo nessa perspectiva, é o de se criar uma tendência de que o cinema só é completo se engajar o seu corpo completamente e prender o seu fôlego; e que jogará o cinema brasileiro não-hollywoodiano, mais uma vez, no limbo dos filmes ruins, fracos. talvez isso tenha relação com a necessidade absurda de prender a atenção dos espectadores, nós, desmiolados que ficam o dia inteiro nas redes sociais, e principalmente das crianças e jovens, que nasceram rodeados de múltiplos estímulos. os filmes tem voltado a ter uma duração longa, porém com o custo de envolver o espectador o tempo todo. o tempo morto, por outro lado, tem perdido cada vez mais seu lugar.
a fuga também guarda uma relação com o luto, a temática do filme de Rojas, e uma das agruras que o protagonista de Motel Destino passa. com o luto, aparecem os fantasmas. para ser sincera, o fantasma que mais me agrada é a voz sem corpo de Cidade; Campo que Joana ouve enquanto limpa a casa de outra pessoa — talvez porquê a voz é meu objeto de estudo no mestrado. ainda assim, defendo-a: a voz grave, vinda de lugar algum ou talvez da lareira automática, manda Joana descansar; é ligeriamente cômica e ainda assim sobrenatural. a aparição na floresta na segunda história já não me convence tanto. os inserts fantasmáticos de Motel Destino também não me tocam muito: o filme do Karim já tinha construído, sem eles, uma atmosfera de delírio tropical dentro dos quartos do Motel e na praia de mar azul. por fim, animais desempenham funções distintas nos dois filmes: o cavalo branco de Cidade; Campo a correr nas planícies verdejantes, liberto e surreal, e que em Motel Destino vai incorporar-se como um Deus Ex-Machina também surreal. as galinhas e bodes de Cidade; Campo também são libertadas num surto, em Motel Destino os animais já estão livres, soltos, pastando e trepando nos terrenos baldios. o gato de Alien, também passeia livre pela nave até que Ripley consegue salvá-lo para lutar a última batalha. mas em Alien: Romulus o único animal que restou é o bicho grotesco e quase impossível de se vencer. porém, vencido. não só de bicho selvagem e espécie-companheira o mundo é feito: um vírus, uma bactéria e um alien também são bichos. por falar nisso, me intriga um pouco que, após a pandemia de covid-19, e num mundo ficcional lotado de doenças infecciosas, os personagens de Alien: Romulus não são nada rigorosos, enquanto Ripley, já naquela época, queria que seu companheiro não entrasse na nave depois de tocar num bicho estranho num planeta desconhecido.
bom dia! ERRATA: AS PRAIAS DE MOTEL DESTINO É EM FORTALEZA CEARA
Mari, sempre tão incrível a sua escrita critica, de muitas conexões e vivencias incutidas nas palavras, emoções pessoais que nos conectam as suas linhas... Desses assisti só Motel Destino, quero muito ver Cidade; Campo e Alien, prefiro que não seja no Imax, mas vamos lá, que venha o cinema!!! Esse que nos captura e nos faz viver (pelo menos pra mim... hehe). Kisses! Love you!