hoje resolvi ir ao cinema; pois me faltava algo. quando lhe falta algo, você recorre a quê? uma fome de sentir e uma solidão infrutífera, fruto mais de tédio e ansiedade do que da melancolia, quase sempre me levam ao cinema. torço para ser surpreendida, quando me sento na sala escura, geralmente atrasada e afobada. torço para não dormir, é noite. torço para que o mundo se alargue um pouquinho; esse mundo que, dia sim dia não, é chato, corriqueiro, confinado, asfixiante. escolhi ver A Filha do Palhaço, de Pedro Diógenes, que se passa em Fortaleza. eu não sabia muito sobre o filme, além de alguns tuítes esparsos. a sala estava quase vazia.
vou falar a verdade, chorei que nem uma cabrita. apesar de lamentar uma sala de cinema vazia de um filme que foi premiado no próprio país (e que tem até Jesuíta Barbosa), é bom chorar quando não tem mais ninguém na sua fileira. no início do filme eu ainda estava contaminada com o filme Sem Coração (Nara Normande e Tião) que vi ontem na Netflix, pensando nesta nova safra de filmes brasileiros e seus protagonistas adolescentes, se há no ar alguma coisa que impele o cinema brasileiro para a juventude: desejamos compreendê-la? atingi-la? explorar suas crises, suas descobertas, sua impulsividade, sua arrogância, mas sobretudo, sua ingenuidade? sentimos falta dessa ingenuidade de crer que o futuro pode ser ensolarado mesmo se imersos no turvo processo de amadurecer? pensava também em Medusa de Anita Rocha da Silveira e um pouco em A felicidade das coisas de Thais Fujinaga.
o que eu não sabia é que A Filha do Palhaço ia me trazer, na verdade, um outro filme – bem diferente dele: foi Bem-vindos de novo quem veio a tona, documentário de Marcos Yoshi. também chorei em Bem-vindos. ambos os filmes falam da ausência e do encontro; de encontrar um familiar que esteve ausente. aqui, um parênteses. fui ler sobre o filme de Diógenes e li a palavra reencontro. fiquei alerta; essa palavra me desagrada. quando tentava conectar o filme de Yoshi e Diógenes, pensei apenas na palavra encontro. não se reencontra o que não se conheceu ou do qual se lembra muito pouco; o que se produz é um novo encontro – o tempo da falta, o tempo da ausência não pode ser recuperado; pode-se apenas construir, no aqui e agora, uma nova relação: isto é um encontro. embora muitas pessoas compartilhem da opinião de que se ausentar da vida dos filhos é imoral (vi uma review no letterboxd nesse tom de abandono sobre A Filha do Palhaço), há de se encarar o fato: pais não participam da vida dos filhos por diversos motivos. no Brasil, então, e seus milhões de filhos de pais ausentes, não podemos fugir da questão ou apenas demonizá-la. o que é incomum é encontrar uma família nuclear estruturada, de pais juntos e presentes. se existe a possibilidade de um reencontro afetuoso entre um filho e um pai (ou mãe), partimos do ponto de que eles estranhos. ainda assim, as partes se dispõe a diminuir essa distância, mesmo entremeada de ressentimentos e arrependimentos – isto não é um encontro? o que ambos os filmes tecem, à sua própria maneira e especificidade, é o encontro de um familiar que é um estranho. talvez seja repelente a ideia de que um pai ou uma mãe seja um estranho. mas talvez nossos pais sejam estranhos mesmo se são presentes; eu não sou mãe, mas talvez os filhos também sejam estranhos aos pais. partir do pressusposto que um laço de sangue nos aproxima é que deveria ser estranho. para todos os efeitos, agarramo-nos às provas físicas da memória; as provas de que somos, mesmo, filhos desse alguém.
A Filha do Palhaço é sobre uma adolescente que vai passar uns dias na casa de seu pai, que foi ausente; o pai apresenta shows de humor travestido de palhaça em bares e casas noturnas de Fortaleza. entre as ruas de Fortaleza, o mar da Praia do Futuro e inferninhos da cena teatral cearense, pai e filha tentam se conhecer. no começo, mal sabem como conversar. no fim, cantam juntos. no meio, a menina acha uma foto do pai com ela bebê no seu colo: a prova de que seu pai, viado, maluco e drogado (como ela grita para ele, se acertei as palavras), é realmente seu pai, segurou-a no colo bebê e guarda a foto consigo.
Bem-vindos de Novo parte dos arquivos em VHS da família de Marcos Yoshi para contar a história de uma família separada pelos fluxos migratórios: os pais de Marcos (e de suas irmãs) vão trabalhar como dekaseguis no Japão. eles retornam após 13 anos, e Marcos, então, filma esse encontro – segundo ele mesmo, se não me engano (eu vi o filme faz um tempo, então ficam aqui impressões meio borradas), o próprio filme é um mecanismo para se aproximar deles novamente. sua mãe, em determinado momento, fala sobre não ter acompanhado o crescimento dos filhos – há ali um certo pesar, mas também a resignação: a história é esta, sua ida foi motivada por necessidades econômicas. o filme constrói a imigração tal qual uma marca indelevel que assola tantas famílias nipo-brasileiras: vemos as fotos do avô, que veio ao Brasil para trabalhar, e que desejava, um dia, retornar a terra natal. seus filhos, por sua vez, partem ao Japão em busca de trabalho, porque no Brasil, sua terra natal, não se encontra trabalho – e anseiam, também, o retorno. numa das cenas mais marcantes, Marcos pede para tocar a cabeça de seu pai.
talvez haja uma razão para o cinema conseguir transmitir tão bem o que significa encontrar um outro alguém. é a coisa da pele, do gesto. é através de um toque ou de uma dança desajeitada que os dois filmes atingem o cume – eis um cume escorregadio, fugidio, logo somos empurrados para o vazio – porém a imagem e o som em movimento também nos escapam. diferente de um livro que se pode ler e reler um trecho, um quadro que se pode passar o tempo que quiser contemplando, o cinema escapa, parte para a próxima. por mais longo que seja um plano, ele é finito. mas dentro dele, às vezes, alguma coisa acontece. em A Filha do Palhaço, o pai passa as mãos na cabeça da filha enquanto ela dorme no seu colo, finalmente entregue, vulnerável ao afeto – essa coisa tão difícil de se materializar e tão efêmera.
há algo ainda semelhante nesses dois universos tão específicos e de formas tão distintas (um é ficção, outro documentário, para começo de conversa) que tento aproximar: ao pai de A Filha do Palhaço não se desculpa pela sua ausência, apesar de tentar se explicar. diferente de Bem Vindos, que parte da tragédia sócio-econômica, este pai está mais sujeito ao julgamento moral. ele se ausentou por conta do desejo – da paixão por um outro homem. mas o desejo também não é, por vezes, inescapável? para fugir da tragédia sociológica dos homens que não se responsabilizam pela criação dos filhos que deixam o fardo às mães, trago à roda Monika e o Desejo de Bergman que, curiosamente, revi ontem. Monika, após passar um verão tempestuoso e idílico nas ilhas com seu namorado, despreocupada e selvagemente grávida, ao ser devolvida à realidade massacrante da maternidade e da pobreza, escolhe o desejo. antes de torná-lo ato, entretanto, ela olha para a câmera, para nós, para o espectador: ciente de estar prestes a fazer algo reprovável, ela nos convida a ser cúmplices de sua escolha. também Elena Ferrante em A filha perdida (e a adaptação de Maggie Gyllenhaal, que eu gosto bastente) fala de uma mãe que escolheu, em determinado momento, o desejo, e para isso, tem de abandonar a maternidade. Aftersun, o filme da onde tiro o nome desse texto (e que A Filha do Palhaço tem sido comparado), explora essa relação de estranho-familiar entre a filha e o pai como num encontro às cegas.
num encontro às cegas, tateia-se o outro com cuidado. por vezes, nos esbarramos, atropelamos. às cegas, quando o sol já se baixou, não podemos ter certeza de quem é o outro se não estendermos nossas mãos e entedermos de que traços são feitos seus rostos. num momento qualquer, como se fosse sem querer, baixamos a guarda, a resistência. é dentro de uma sala escura que o cinema se faz – este que não é a vida, mas um recorte, uma tentativa de apreendê-la. de tocá-la, por um breve instante. talvez essa definição me baste para tomar um filme por honesto, verdadeiro.
talvez eu tenha chorado porque a vida, ela mesma, é tão dura: considerar um estranho-familiar um outro que se pode conhecer de novo, e talvez pela primeira vez, me parece quase impossível. eu não tenho a ver com o universo específico em que se passam os filmes, mas pergunto, não é justamente o específico que nos toca? ao sair do meu próprio corpo e da minha realidade para embarcar numa outra – lugares que nunca fui, histórias familiares que não são parecidas com as minhas – encontro, sem querer, os cantos mais recônditos e escuros de minhas próprias faltas e falhas.
filmes citados e onde assistir:
A Filha do Palhaço está passando agora no cinema.
Bem-vindos de Novo e Medusa dá pra alugar na Claro tv+, Oi Play e Vivo Play.
A Filha Perdida e Sem Coração está na Netflix.
Aftersun está no Mubi.
A Felicidade das Coisas está no Prime Video.
Monika e o Desejo parece que tem no yt, recomento piratear.
Gosto muito dos filmes que retratam relação com pai e mãe. Acho bonito pensar nesse encontro complexo. Tem sido uma das principais questões como adulta, olhar pra essas figuras da minha vida a partir de outro encontro. Um beijo